SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A derrota do Brasil para o Uruguai no jogo decisivo da Copa do Mundo de 1950, hoje conhecida como Maracanazo, foi chamada por Nelson Rodrigues de “nossa Hiroshima”. “Foi uma humilhação nacional que nada, absolutamente nada, pode curar”, escreveu o cronista, na Manchete Esportiva, oito anos depois da partida.

Nada, de fato, curou. Nem cinco campeonatos mundiais. O máximo que ocorreu foi a substituição daquele 2 a 1 por um 7 a 1, que passou na década passada a ser o símbolo da “humilhação nacional”, a ponto de fazer de “7 a 1” uma expressão popular que denota fracasso retumbante.

Mas a derrota por 7 a 1 para a Alemanha nas semifinais da Copa de 2014, realizada no Brasil, tem um peso diferente da derrota por 2 a 1 para o Uruguai no duelo derradeiro do Mundial de 1950, realizado no Brasil. Há 75 anos, havia uma quase certeza do triunfo.

Era uma Nova Era que ia se abrir para o futebol brasileiro. Todos a esperavam: ela tinha data marcada para começar. 16 de julho de 50″, escreveu Mario Filho no célebre “O Negro no Futebol Brasileiro”. “Que dúvida podia haver? As fábricas de flâmulas trataram de fazer centenas de milhares de flâmulas: ‘Brasil, campeão do mundo’.”

O Brasil não foi campeão do mundo.

Bastava-lhe o empate com o Uruguai, após goleadas sobre Suécia e Espanha no quadrangular final. A expectativa era de nova goleada, mas a multidão presente no Estádio Municipal do Rio de Janeiro -depois batizado em homenagem a Mario Filho e conhecido pelo nome do bairro carioca do Maracanã- viu uma virada hedionda.

“Pois entramos por um cano deslumbrante, nas barbas de 200 mil brasileiros. Foi uma tragédia pior do que a de Canudos”, escreveu Nelson Rodrigues -irmão de Mario-, que, com seu olhar de dramaturgo, visualizou uma cena de “suicídio nacional”. “Éramos, todos nós, uma nação que quase toma formicida”.

Mais do que os gols de Juan Schiaffino e Alcides Ghiggia, ecoa há sete décadas e meia o tapa de Obdulio Varela. Um tapa que, tudo indica, nunca aconteceu.

Não há registro completo da partida em vídeo. Restaram os lances dos gols, mais uma ou outra jogada desimportante e cenas de alegria e tristeza naquele que era o maior estádio do mundo. A suposta agressão ficou mesmo no papel, nos textos de Mario, mas ganhou o imaginário popular e foi apontada como explicação para a zebra.

O Brasil tinha feito 7 a 1 na Suécia e 6 a 1 na Espanha, com o público enlouquecido cantando a música “Touradas em Madri”. O Uruguai havia sofrido para buscar um empate por 2 a 2 com a Espanha e derrotado a Suécia por 3 a 2. Era evidente o favoritismo dos donos da casa, e uma derrota tão surpreendente teve justificativas que foram além de conceitos táticos e técnicos.

Em resumo, o tapa de Obdulio acovardou o Brasil e engrandeceu o Uruguai.

Pouco importa que o próprio Mario Filho tenha revisto sua versão inicial. Na última edição de “O Negro no Futebol Brasileiro”, escreveu que Varela “agarrou Bigode pelo pescoço”. “Não lhe meteu a mão na cara. Mas que o balançou em safanões, balançou.” De qualquer maneira, o cerne da questão não mudou.

O episódio ajudou Nelson Rodrigues a desenvolver o conceito do “complexo de vira-latas”, a “inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo”. Segundo ele, “Obdulio nos tratou a pontapés, como se vira-latas fôssemos”.

Tratado a pontapés -ou a tapas, ou a safanões, a depender do relato-, Bigode foi apontado como um dos culpados. Era um homem negro, como o goleiro Barbosa e o zagueiro Juvenal, também responsabilizados pelo fracasso. “Era o que dava, segundo os racistas que apareciam aos montes, botar mais mulatos e pretos do que brancos no escrete brasileiro”, escreveu Mario Filho.

Ninguém sofreu tanto quanto Barbosa, que falhou no chute fatal de Ghiggia. Em 2000, pouco antes de morrer, ele observou que sua punição talvez fosse excessiva. “Qual é a pena máxima no Brasil? A pena máxima por um crime no Brasil é de 30 anos. Eu pago por aquele gol há 50”, disse.

Barbosa é um ídolo histórico do Vasco, um arqueiro de qualidade excepcional. É, no entanto, mais lembrado pela bola que não pegou do que pelas muitas que agarrou. Sua trajetória -especialmente sua dor- provocou e provoca atração, com múltiplas representações no campo das artes.

Uma delas é o livro “O Goleiro Fantasma”, de Raul Drewnick, singela obra infanto-juvenil que reabilita a figura do jogador. O trabalho é “dedicado à memória e à honra de Barbosa, goleiro do Brasil na Copa do Mundo de 1950 e mártir supremo do futebol brasileiro”.

“Sempre tive fascínio pela vítima, jamais pelo tirano. Barbosa foi, sim, a maior vítima da maior tragédia do futebol brasileiro, um drama grego passado no Maracanã”, afirmou Drewnick à Folha.

“Todos se livraram jogando a culpa no Barbosa, esse foi o drama. Foi fácil arranjar uma vítima tão evidente, o goleiro que tomou dois gols. Quem fala hoje de Flávio Costa?”, questionou o escritor, corinthiano, ainda irritado porque o ponta-direita Cláudio, maior artilheiro da história do Corinthians, não foi convocado.

Realmente, poucos se lembram de Flávio Costa. Lembram-se do erro de Barbosa. E se lembram da bofetada de Obdulio, ainda que ela não tenha acontecido.