SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – É 12 de setembro de 2022. Com a camisa do pijama aberta exibindo o torso nu, Jean-Luc Godard se senta à beira da cama e dita vagarosamente o que escreve num caderno: “Usar um cavalo branco para mostrar que um cavalo não é um cavalo não é tão eficaz quanto usar um não cavalo para mostrar que um cavalo não é um cavalo.” Depois, olha rapidamente para a lente da câmera e dá um ok, encerrando assim “Scénarios”, seu derradeiro trabalho, horas antes de partir para seu suicídio assistido, na Suíça, onde vivia.

A proposição paradoxal -saída de um antigo diálogo da filosofia chinesa- espanta não só pela complexidade, mas pela lucidez com que o último mestre da nouvelle vague, aos 91, concluiu a obra, enfim exibida pela primeira vez no Brasil nesta sexta (18), no Sesc Paulista, em São Paulo, após estrear no Festival de Cannes do ano passado.

O curta de 18 minutos é precedido de um documentário, em que seus assistentes, Jean-Paul Battaggia e Fabrice Aragno, registram o francês explicando como gostaria de montar uma espécie de trailer para “Scénarios”, que acabou não sendo realizado.

Em “L’Histoire de ‘Scénario'”, Numa tomada centrada nas mãos do mestre, vemos Godard explicar suas ideias e folhear um livreto cheio de anotações, colagens e pinceladas -radicalizando sua visão do cinema como uma arte feita com as mãos.

Ainda que seja todo rodeado pela morte -inclusive pela forma como “Scénarios” é dividido em duas partes, batizadas “DNA” e “ressonância magnética”-, há algo de pueril nos gestos do diretor, rabiscando as folhas com canetinha, colorindo autorretratos seus e indo de John Cassavetes a Emmanuel Macron no seu fluxo de ideias e antíteses.

Emociona ainda pela fragilidade do autor e pelas sensações ora violentas, ora nostálgicas, que evocam trechos de filmes como “Paraíso Infernal”, uma das grandes aventuras de Howard Hawks, ou “Bando à Parte”, de Godard, destacando as palavras finais de um dos protagonistas.

“A obra dele extrapola o cinema e inclui desenhos, pinturas, imagens digitais, roteiros visuais, grande parte deles marcados pelo signo da invenção e da experimentação”, diz Lucas Murari, pesquisador de cinema experimental que, junto do diretor e historiador Adilson Mendes, promove a mostra, além de um curso no mesmo espaço.

O evento começa nesta terça (15), com o lançamento do livro “Jean-Luc Godard: Escritos Políticos sobre Cinema e Outras Artes Fílmicas”, publicado na França em 2023 por Nicole Brenez, outra das fiéis escudeiras do francês nos seus anos derradeiros, e traduzido por Mendes.

O volume traz um percurso para iniciados, que vê a política não só nos cine-panfletos do artista ou nos trabalhos como parte do coletivo militante Dziga Vertov, nos anos 1960 e 1970, mas como um gesto cujas origens remontam à iconoclastia bizantina.

“Em Godard, como no Império Bizantino, a imagem assume dimensões plurais: religiosas, políticas e militares. Desde o século 8, os ícones deixaram de ser apenas armas simbólicas para se tornarem causa de disputas, gerando controvérsias não apenas sobre as imagens, mas também contra e por elas”, diz Murari.

Parte dessa batalha poderá ser vista na programação do Sesc até dia 25, com exibições de filmes como “A Chinesa”, de 1967, uma leitura de Dostoiévski à luz do maoismo, e “Momentos Selecionados da(s) História(s) do Cinema”, com uma trilha sonora ao vivo acompanhando trechos dessa ambiciosa série de TV.

Os artigos de Brenez também sublinham a capacidade de Godard de imprimir seu pensamento nos mais diversos meios. “Como ele diria, ‘não se trata apenas de produzir imagens políticas, mas de produzir imagens politicamente’. O desafio, hoje, é reativar essa potência, enfrentando os novos regimes de visibilidade com a radicalidade que ele exerceu até nos contextos mais adversos, como em trailers, clipes, publicidades e filmes corporativos”, afirma Murari.

Outro aspecto notável é a seção dedicada aos emails enviados por Godard a Brenez e outros amigos, tão crípticos quanto seus filmes -mensagens cheias de trocadilhos, citações, fórmulas matemáticas, fotos dele com seus cachorros e pinturas que dão a ver como ele estava antenado com o mundo, aludindo à pandemia, à eleição de Donald Trump ou à invasão da Ucrânia pela Rússia.

“O livro como forma também é um tema da última fase de Godard. E Brenez segue o impulso, tomando o livro como uma montagem muito original por fundir a história das ideias, o comentário histórico, análise imanente e a experiência individual de contato com a obra e seu autor”, diz Mendes, o historiador.

Tal mergulho na intimidade godardiana revela ainda o diálogo do autor com seus colaboradores e a onipresença da crítica neste processo. Isso é notável na análise de Brenez sobre “Filme Socialismo”, de 2010, e nas suas anotações durante a montagem de “Imagem e Palavra”, longa de 2018.

Tamanha era a sintonia com o gênio cinéfilo que ela mesma, por exemplo, sugere: “Antes ou depois da citação de ‘Ivan, o Terrível’ (melhor antes), utilizar passagens de ‘Les Enfants de la Guerre’, de Jocelyne Saab, de 1976. Vantagens: trata-se de um ‘remake’ psíquico. Em Beirute, em uma praia, crianças encenam o massacre real a que acabaram de assistir.”

Noutra altura, anota: “Por que aqui um efeito Kuleshov, uma criatura gentil de “Monstros” (1932) com imagens pornográficas? Não entendi. A rever (eu, não vocês).”

Rever, aliás, é um gesto indispensável para dar conta dos seus mais de cem filmes. “Em Godard, o cinema começa já no título”, diz Murari, lembrando como o cineasta fez vários outros “scénario” -ou roteiros- ao longo das décadas, destrinchando seu processo criativo.

Não à toa, o livro de Brenez adianta alguns dos fotogramas que entrariam no trabalho final do francês. O mais notável é o de um burrinho -será uma evocação de “A Grande Testemunha”, de Robert Bresson? No filme, sobre essa imagem, Godard lê também a tal proposição filosófica sobre cavalos. Seria este o não cavalo? Ou será um espelho, e Godard é o próprio burrinho?

Difícil concluir. Fato é que, no escritório do cineasta, entre mil e uma fotografias afixadas pelas paredes, Godard riscou em giz preto uma frase de Georges Bernanos: “Que importa? Tudo é graça.”

JEAN-LUC GODARD: VANGUARDA E POLÍTICA

Quando De 15 a 25 de julho

Onde Sesc Paulista – av. Paulista, 119, São Paulo

Preço Grátis

Link https://www.sescsp.org.br/unidades/avenida-paulista/

JEAN-LUC GODARD: ESCRITOS POLÍTICOS SOBRE O CINEMA E OUTRAS ARTES FÍLMICAS

Preço R$ 120 (250 págs.)

Autoria Nicole Brenez

Editora Desconcertos

Link https://desconcertoseditora.com.br/produto/jean-luc-godard-escritos-politicos-sobre-o-cinema-e-outras-artes-filmicas/

Tradução Adilson Mendes