ARLES, FRANÇA (FOLHAPRESS) – Retratos imaginários de casais LGBT do século 19, gerados por inteligência artificial. O início da carreira de Claudia Andujar. O cotidiano de uma favela belorizontina nos anos 1980. A fotografia modernista em São Paulo. Uma homenagem a Sebastião Salgado. Nunca o Rencontres d’Arles, no sul da França, um dos maiores festivais de fotografia do mundo, foi tão brasileiro.
São quatro grandes exposições, além de outras mostras e palestras que apresentam um panorama variado da fotografia brasileira. “Estamos muito felizes com essas quatro direções diferentes da presença brasileira este ano”, diz o diretor do festival, Christoph Wiesner. Parte da programação faz parte do Ano do Brasil na França, temporada de eventos culturais que vai de abril a setembro.
A edição deste ano começou na semana passada e vai até outubro. Na noite de abertura, em um anfiteatro da época do Império Romano, Lélia e Juliano, viúva e filho de Sebastião Salgado, discursaram em homenagem ao fotógrafo mineiro, que morreu em maio, aos 81 anos, de leucemia.
Juliano lembrou que os pais eram presença assídua em Arles: “Sebastião e Lélia formaram o olhar de fotógrafo e curadora aqui, durante o Rencontres.”
O ponto alto da noite foi um tributo a Nan Goldin, que recebeu o prêmio Mulheres em Movimento, pelo conjunto da obra. “É engraçado receber esse prêmio agora, quando mal posso andar”, disse a americana, 71, ironizando a própria saúde, abalada por anos de vício em opioides. “Mas ainda me sinto uma mulher em movimento.”
Goldin fez jus à reputação de contestadora. “Fiquem atentos, eu tenho uma surpresa”, anunciou. Então, chamou ao palco o jovem escritor Édouard Louis, 32, muito em evidência, inclusive no Brasil, pela obra fortemente autobiográfica, que expõe o bullying contra os homossexuais.
Os dois leram um manifesto denunciando Israel por aquilo que definiram como “o primeiro genocídio ao vivo”. O anfiteatro aplaudiu em peso, mas vozes isoladas protestaram. “Coisas horríveis aconteceram em 7 de outubro. É verdade”, admitiu Goldin. “Agora, 75 mil palestinos foram mortos. Não é vingança suficiente?”
A exposição de Goldin em Arles, “Síndrome de Stendhal”, é uma das mais concorridas do festival. Contrapõe pinturas e esculturas clássicas a retratos que a americana fez de amigos e amantes. Outro ponto alto do festival é “Yves Saint Laurent e a Fotografia”, impressionante painel da relação do estilista com os grandes nomes da imagem, de Robert Doisneau a Annie Leibovitz.
É natural que o festival reflita as controvérsias de seu tempo. Além de Gaza, um tema inevitável de debate em Arles foi a inteligência artificial. Alguns fotógrafos enxergam a IA como uma ferramenta; outros, como uma ameaça.
Nesse terreno, a obra da baiana Mayara Ferrão foi uma das mais discutidas. Ela utiliza a IA para criar retratos que imitam a estética dos séculos 19 e 20, porém celebrando o amor entre mulheres pretas algo impossível de encontrar nos arquivos do mundo real.
Ferrão é uma dos 13 artistas na exposição “Futuros Ancestrais”. A curadoria de Thyago Nogueira buscou um painel representativo da diversidade da nova geração da fotografia brasileira, que, segundo ele, “está construindo uma nova forma de pensar as artes de uma maneira geral e também de repensar a história do Brasil, a partir da própria identidade”.
Um dos maiores exemplos do que Nogueira afirma é outra baiana, Ventura Profana. Artista multidisciplinar, pastora, travesti, Profana denuncia a violência e as contradições da sociedade brasileira em colagens onde figuram amigas trans, caravelas portuguesas, tanques de guerra, a bancada da Bíblia, o papa e o Cristo Redentor.
Sem medo da polêmica, ela traça um paralelo entre Jesus e a população trans. “Jesus foi morto com 33 anos. A expectativa de vida da população trans é de 35. Quando a gente estuda o discurso de Jesus, os confrontos que teve com os fariseus, começa a achar paralelos com a luta dos oprimidos”, explica.
Sob outra ótica, os excluídos também são o tema de “Retratistas do Morro”, que expõe décadas de trabalho de dois fotógrafos da comunidade da Serra, em Belo Horizonte, João Mendes e Afonso Pimenta.
Registrando o cotidiano dos moradores aniversários, formaturas, bailes funk, Mendes e Pimenta reuniram aos poucos um acervo de enorme valor artístico e documental. Pupilo de Mendes, Pimenta conta que o amigo lhe ensinou a nunca jogar os negativos fora afinal, o cliente sempre podia voltar para pedir uma nova tiragem.
O tesouro foi salvo do esquecimento pelo pesquisador independente Guilherme Cunha. “A gente não tinha noção desse movimento de artistas brasileiros que viveram e trabalharam nas favelas, acumulando uma iconografia inédita dentro da história das imagens brasileiras”, diz Cunha, cujo projeto já reúne 250 mil imagens de várias origens.
Expostas no Sesc Pinheiros em 2023, as imagens de Mendes e Pimenta chamaram a atenção de Wiesner, o diretor do Rencontres d’Arles, em uma visita a São Paulo. Na semana passada, foi anunciada a aquisição de cinco fotos do acervo pelo MoMA, o Museu de Arte Moderna de Nova York.
Um outro Brasil surge na exposição “Construção Desconstrução Reconstrução – Fotografia Modernista Brasileira (1939-1964)”. O ponto de partida das curadoras Helouise Costa e Marcella Legrand Marer foi o Foto Cine Clube Bandeirante (FCCB), que projetou nomes como Thomaz Farkas e Geraldo de Barros.
O título da exposição reflete a evolução da temática dos fotógrafos do FCCB ao longo dos anos. “A construção tem a ver com a utopia de um país novo, de um futuro promissor. As fotos usam a arquitetura como pretexto. Na desconstrução, as fotografias têm uma pegada social, mostram quem pagou o preço por esse progresso. E a última sala, da reconstrução, é dedicada à experimentação”, explica Costa, pesquisadora do Museu de Arte Contemporânea de São Paulo (MAC-USP).
O pós-1964 na fotografia brasileira é contemplado em Arles na mostra “Claudia Andujar: No Lugar do Outro”, que também tem curadoria de Thyago Nogueira, diretor do departamento de arte contemporânea do Instituto Moreira Salles, o IMS. A mostra se concentra na obra de Andujar, 94, anterior ao trabalho com os Yanomami que a notabilizou: o período na icônica revista Realidade, no final dos anos 1960, e séries autorais como “A Sônia”, de 1971.
O Brasil ainda está presente em Arles em outras exposições, como “A Guerra da Lagosta”, inspirada em um incidente diplomático entre Brasil e França nos anos 1960, quando pescadores franceses foram apreendidos em águas brasileiras; e “Alumbre na Macaia”, do artista multimídia Ian Cheibub, que trata dos rituais do candomblé.
O jornalista viajou a Arles a convite do Ano do Brasil na França
RENCONTRES DARLES
– Quando Até 5 de outubro
– Onde Vários endereços em Arles, na França
– Preço 5 a 40
– Link: https://www.rencontres-arles.com/en