SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Em uma demonstração de como os cantos mais distintos do planeta estão conectados por um clima em comum, no primeiro trimestre deste ano foram detectados no coração da amazônia três eventos intensos de poeira vinda do deserto do Saara.
Os registros foram feitos no Atto (sigla em inglês para Observatório da Torre Alta da Amazônia), projeto localizado na Estação Científica de Uatumã, cerca de 150 km ao norte de Manaus, no Amazonas, que monitora a floresta de forma ininterrupta.
Os episódios foram observados entre 13 e 18 de janeiro, 31 de janeiro e 3 de fevereiro, e 26 de fevereiro e 3 de março, com concentrações que chegaram a 20 ?g/m³ de PM2.5 (unidade de medida usada para se referir a partículas menores que 2,5?m de diâmetro).
A chegada de partículas minerais vindas do maior deserto do mundo à maior floresta tropical do planeta é comum de dezembro a março, período marcado pelas chuvas na amazônia. No entanto, os eventos registrados neste ano foram de quatro a cinco vezes mais intensos do que a média para essa época do ano, que é de cerca de 4 ?g/m³.
“No primeiro semestre do ano, a atmosfera na amazônia é geralmente dominada por partículas de origem natural, com emissões da própria floresta. Comumente, as concentrações [de poeira] são muito baixas. As perturbações causadas pelo transporte de poeira são bastante visíveis na série temporal”, explica em comunicado Rafael Valiati, doutorando no Instituto de Física da USP, que estuda esses dados.
Ele classifica as ocorrências deste ano como “razoavelmente” intensas, mas não em níveis inéditos.
As concentrações são baixas demais para serem vistas a olho nu -diferentemente do que acontece, por exemplo, na Europa, que chega a receber “chuva vermelha” devido à poeira do Saara. No final dos anos 1980, o fenômeno chamou tanto a atenção do músico Caetano Veloso que virou a música “Reconvexo” (“Eu sou a chuva que lança a areia do Saara / Sobre os automóveis de Roma”).
O transporte intercontinental da poeira do deserto africano se dá quando tempestades com fortes ventos suspendem as partículas até a troposfera livre, principalmente, de 2 km a 5 km de altitude. Dependendo da circulação atmosférica e das condições meteorológicas, elas são depositadas a milhares de quilômetros de distância.
A chegada até a floresta amazônica, diz o pesquisador, ocorre quando os ventos se encontram na Zona de Convergência Intertropical, que se posiciona mais ao sul nos primeiros meses do ano. A partir do meio do ano, a convergência fica um pouco mais ao norte, quando a poeira do Saara é registrada, ocasionalmente, no Caribe e na América do Norte.
A depender da velocidade dos ventos, as partículas podem levar entre 7 e 14 dias para percorrer os mais de 5.000 km que separam a África da América.
“A intensidade desses episódios é bastante variável na amazônia, pois depende da quantidade de poeira que foi lançada na atmosfera no Saara, da velocidade do vento ao longo do transporte, e, principalmente, da precipitação, pois a chuva remove as partículas da atmosfera”, explica Valiati.
“Para observarmos a poeira com alguma intensidade aqui na América do Sul, a massa de ar que saiu lá do Saara precisa passar por todo esse transporte sem sofrer precipitação”, detalha.
As partículas foram detectadas por instrumentos instalados no topo do Atto, torre com 325 metros de altura instalada no meio da amazônia.
O Atto é um programa científico do MCTI (Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação), coordenado pelo Inpa (Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia) em cooperação com o Instituto Max Planck, da Alemanha.
O projeto busca melhorar a compreensão sobre as interações da atmosfera com a floresta, incluindo a influência da mata no clima e os impactos da mudança climática sobre o bioma.
Os efeitos do depósito da poeira do Saara sobre a amazônia estão sendo estudados. “O que já se sabe é que o potássio e o fósforo da poeira mineral contribuem, no longo prazo, para a manutenção da fertilidade do solo, que em geral é muito pobre”, afirma Carlos Alberto Quesada, pesquisador do Inpa e coordenador do Atto pelo lado brasileiro.