CORUMBÁ, MS (FOLHAPRESS) – Todo mundo ficou mal, com muito trauma do incêndio”, conta Rosemari Gomes de Souza, 24, moradora de uma comunidade ribeirinha às margens do rio Paraguai, em Corumbá (MS). A região foi atingida pelas queimadas históricas de 2020 e 2024 no pantanal, que deixaram prejuízos ao ecossistema e à saúde de quem vive no local.

O Aterro do Binega, onde Rosemari mora com as três filhas e o marido, está na região da Serra do Amolar, formação de morros que faz fronteira com a Bolívia e reúne territórios ribeirinhos e indígenas ao longo do rio Paraguai.

O local fica há quatro horas de distância, de barco, da área urbana de Corumbá e foi um dos mais afetados pelas queimadas do último ano -quando, segundo dados do Monitor do Fogo, do Mapbiomas, 1,9 milhão de hectares do bioma foram afetados pelas queimadas, área equivalente a cerca de 2,7 milhões de campos de futebol.

O estrago do ano passado foi o segundo maior dos últimos seis anos, atrás apenas dos 2,3 milhões de hectares que queimaram em 2020 -quando Rosemari viu o fogo se aproximar de sua casa pela primeira vez.

Houve uma madrugada, ela lembra, em que a família precisou deixar a casa para se proteger do fogo. Na ocasião, seu pai, José, havia saído para pescar durante a noite e, ao voltar, alertou os vizinhos de que o vento havia mudado de direção e a queimada estava muito próxima.

Ela e o marido, então, colocaram as crianças no bote da família e partiram para a outra margem do rio “Tivemos que ficar no barco, de madrugada, na praia que tem lá do outro lado, até o fogo acalmar.”

Nos últimos anos, o calor do fogo e a presença da fumaça dos incêndios somaram-se a outros problemas de saúde dos moradores, que dependem da ida até Corumbá para tratamentos contínuos.

A viagem à cidade, porém, é difícil de custear. Há o valor do combustível, para quem tem barco, ou a passagem em freteiras, embarcações usadas para transporte de passageiros e mercadorias, que pode chegar a R$ 300 por pessoa. Por isso, uma das principais reivindicações dos moradores é a de que haja uma unidade de saúde ou uma “ambulancha”, um barco hospital, que fique mais próximo à região.

A comunidade recebe visitas trimestrais de agentes do programa Povo das Águas, que oferece serviços de saúde e assistência social a territórios ribeirinhos. Não há, segundo a prefeitura, projetos que preveem a implantação de alguma unidade de saúde mais próxima ao território.

O Ministério da Saúde lista problemas que podem ser causados pela proximidade de incêndios florestais. A inalação da fumaça provoca irritação ocular e respiratória e pode aumentar o risco de doenças cardiovasculares, especialmente em pessoas com problemas de saúde pré-existentes. Além disso, o trauma de viver em áreas afetadas pode resultar em problemas de saúde mental, como estresse pós-traumático e ansiedade. Todos esses sintomas estão entre as queixas de moradores do Binega.

Edna da Silva Amorim, 36, que mora na comunidade com o marido, Ronaldo Alves da Silva, 42, e os dois filhos, Raisla, 8, e Luís Miguel, 12, afirma se preocupar com os impactos do período de seca e de fogo na saúde das crianças.

A tosse e a sensação de garganta seca se tornaram constantes, diz. Além disso, a menina passou a ter sangramentos no nariz quando venta ou o tempo seca –os médicos que visitam a comunidade de três a quatro vezes no ano atribuíram o problema à exposição prolongada à fumaça.

Raisla passou também a ter medo de nuvens escuras, devido aos meses em que a fumaça tomou conta da região. Ela tinha três anos quando a família enfrentou as queimadas de 2020 e, após o fogo, ventos fortes carregavam resíduos dos incêndios em “tempestades de cinzas”.

“A minha menorzinha criou um trauma forte. Quando arma o tempo lá para cima [na serra], ela já sai de carreira para dentro de casa”, diz a mãe.

No ano passado, os pais tentaram acalmar a filha, dizendo que a tempestade não voltaria e que o estrago seria menor do que em 2020, mas o cenário foi parecido. “Não tinha para onde ir. Do outro lado do rio, era só o fogo, aqui também era só fogo, não tinha para onde escapar. Aí tivemos que aguentar tudo de novo”, relata Ronaldo.

Os filhos do casal frequentam a Escola Municipal Rural de Educação Integral Polo São Lourenço, que recebe alunos do Binega e de comunidades vizinhas. Lá, os professores afirmam viver diariamente com a apreensão.

A unidade atende 26 alunos do ensino fundamental: 14 moram na vizinhança e 12 deles ficam alojados na escola, junto dos professores e da equipe responsável pela limpeza e pela alimentação. Em agosto do ano passado, todos precisaram sair às pressas para fugir dos incêndios.

Emilio Carlos Moraes, 63, professor na unidade, leciona matemática e ciências para duas turmas multisseriadas, uma com alunos do 1º ao 5º ano e outra com estudantes do 6º ao 9º ano. Após a temporada de fogo, ele observou mudanças significativas no comportamento dos alunos, principalmente dos que moram na unidade.

“Eu percebi um certo medo… e essas atitudes de repetir sempre a mesma coisa. Precisava de um psicólogo, né? Para orientar as crianças, eu falo com eles, mas não entendo da área.”

Ele mesmo diz se sentir mal e querer deixar o episódio para trás. “Meu refúgio é que eu penso ‘vou para casa, vou ficar lá 15 dias e vou esquecer’, mas não consigo esquecer.”

Para cumprir a carga horária do ano, a cada bimestre, a escola têm 71 dias de aulas em período integral, das 7h às 15h30, e 15 dias de descanso, em que os alunos alojados e os professores retornam às suas casas.

Segundo ele, o fogo inicialmente não preocupou tanto a equipe, que recebeu orientações do Corpo de Bombeiros e também do Instituto do Homem Pantaneiro, organização sem fins lucrativos que atua na região e que acompanhou a reportagem até a escola.

Para o professor, a falta de experiência com a situação deixou o episódio ainda mais assustador. “Tivemos que sair só com a roupa do corpo e ficamos em uma pousada por três dias, até podermos respirar melhor.” As aulas foram suspensas por alguns dias, que se somaram ao período de descanso do bimestre.

A dificuldade de acesso ao atendimento médico também compromete o tratamento de doenças crônicas, como hipertensão e diabetes. Este é o caso de Joana, 52, mãe de Rosemari, que convive com as duas condições. Sem acesso a aparelhos para fazer a medição da pressão, elas acompanham os sintomas e cuidam com remédios caseiros, até terem condições de ir para Corumbá.

O mesmo acontece com José Catarino, 58. O pescador, que é vizinho da escola, é hipertenso e tem uma lesão no fêmur. Mesmo quando tem condições de ir até a cidade, conta, a espera pela disponibilidade de médicos no SUS atrapalha.

Se o sistema de saúde ainda não teve melhorias, ao menos a preparação contra o fogo avançou. Após 2020 e 2024, membros da comunidade receberam treinamento para iniciar o combate às queimadas em ações promovidas pelo PrevFogo, órgão do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis).

Nos últimos meses, o pantanal recebeu chuvas fora de época, que encheram os rios e fizeram o mato crescer em cima da vegetação queimada. A mudança na paisagem é sinônimo de alívio, mas a vegetação é apenas rasteira. Árvores frutíferas e algumas espécies de animais, antes presentes na região, se tornaram escassas.

“As pessoas que vêm aqui agora podem até falar ‘o pessoal de lá tá mentindo, tá tudo verde’, mas na época da seca racha o chão, seca tudo, não sobra nada”, afirma Ronaldo.

ENTENDA A SÉRIE

A série de reportagens “Cicatrizes no Pantanal” aborda impactos na saúde, na educação e nos modos de vida de comunidades após as queimadas históricas de 2020 e 2024 no bioma. O trabalho é parte do projeto Excluídos do Clima, uma parceria da Folha com a Fundação Ford.