SÃO CARLOS, SP, E SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “De repente, houve um enorme lampejo de luz, a luz mais brilhante que eu já vi ou que qualquer pessoa já viu, creio. Ela explodia; dava botes; cavava um buraco dentro da gente. Era uma visão que podia ser vista com algo mais do que com os olhos. Dava a impressão de durar para sempre.”
A descrição, feita pelo físico ganhador do Nobel Isidor Isaac Rabi, é um dos diversos relatos da experiência assombrosa de presenciar a primeira explosão de uma bomba atômica. O teste Trinity, realizado às 5h29 (horário local) de 16 de julho de 1945, no deserto do Novo México (sudoeste dos Estados Unidos), marcou o início da era em que os seres humanos se tornaram capazes de destruir sua própria biosfera.
Oito décadas depois do teste, o que impressiona nos relatos dos participantes é a estranha mistura de incerteza sobre como seria a explosão (se é que ela chegaria mesmo a acontecer) com a compreensão imediata, após o sucesso da empreitada, de que o mundo jamais seria o mesmo.
Foi o momento culminante do Projeto Manhattan, um esforço que acabaria empregando 130 mil pessoas, ao custo de US$ 2 bilhões de então (ou quase R$ 200 bilhões em valores de hoje), entre 1942 e 1946. Ironicamente, a inspiração original para o projeto partiu do pacifista Albert Einstein e de seu colega húngaro Leo Szilard.
Em carta formulada pelos dois, assinada por Einstein e entregue ao presidente americano Franklin Roosevelt em outubro de 1939, os cientistas alertavam sobre o risco de a Alemanha nazista desenvolver armas atômicas e pediam que os EUA estimulassem suas próprias pesquisas sobre o tema.
Os americanos ainda demorariam dois anos para entrar na Segunda Guerra Mundial. Mas, após o início da participação do país no conflito, grande parte dos maiores físicos do mundo passou a receber apoio das Forças Armadas no desenvolvimento das primeiras armas atômicas.
Coordenado pelo nova-iorquino Julius Robert Oppenheimer no laboratório de Los Alamos, no Novo México, formou-se um “dream team” da ciência mundial. O objetivo inicial de muitos desses cientistas era usar o “novo tipo de bomba” como arma decisiva contra o nazismo, encerrando de vez o conflito global.
Entretanto, os imensos desafios envolvidos na fabricação do artefato -ou “a geringonça”, como era chamado informalmente pela equipe- fizeram com que a guerra se aproximasse do fim, com a chegada do ano de 1945, sem que o trabalho estivesse concluído. Na Europa, a vitória dos Aliados contra os nazistas foi proclamada em 8 de maio.
Mas o Japão, país aliado de Hitler cujo ataque ao Havaí tinha levado os americanos a entrar na guerra, ainda não se rendera. Os EUA se preparavam para uma invasão do território japonês, mas consideravam que as bombas atômicas poderiam aterrorizar o adversário a ponto de fazê-lo se entregar incondicionalmente.
Diante disso, o trabalho em Los Alamos prosseguiu a todo vapor. A equipe de Oppenheimer havia desenvolvido dois modelos diferentes da primeira bomba, um bem mais simples e ineficiente, outro considerado mais elegante do ponto de vista da física envolvida, mas também mais complexo.
No teste, marcado para acontecer numa área do deserto conhecida como Jornada del Muerto, a “geringonça” era composta de uma complexa combinação de elementos químicos radioativos, em especial o plutônio e o urânio, e explosivos convencionais.
A ideia era que a detonação dos explosivos acontecesse de tal maneira que eles aumentassem de forma intensa e rápida a densidade do núcleo radioativo da bomba. Isso desencadearia a reação em cadeia que “quebra” os núcleos dos átomos, liberando imensas quantidades de energia em minúsculas frações de segundo.
Ainda há certo mistério acerca de como a testagem acabou ganhando seu codinome oficial. “Oppenheimer apelidou o teste de ‘Trinity’, embora, anos depois, não soubesse com muita certeza por que escolhera esse nome”, escrevem os biógrafos do físico, Kai Bird e Martin Sherwin.
Ambas as possíveis inspirações para a designação, de qualquer maneira, refletem o caráter vagamente místico e as obsessões literárias do líder do Projeto Manhattan. Uma delas é um poema do sacerdote anglicano John Donne (1572-1631) sobre a Santíssima Trindade (Pai, Filho e Espírito Santo, na crença cristã). Outra possibilidade, dizem Bird e Sherwin, é que ele estivesse pensando em outra trindade divina, a da religião hindu, formada por “Brahma, o criador, Vishnu, o preservador, e Shiva, o destruidor”.
O local escolhido para o teste, repleto de cactos, escorpiões, cascavéis e aranhas de grande porte, precisou receber infraestrutura praticamente do zero.
‘Dia da pescaria’
A data de 16 de julho -apelidada de “dia da pescaria” nas mensagens cifradas do grupo- acabou sendo fixada em parte por motivos políticos.
O novo presidente dos EUA, Harry Truman, estava se reunindo naqueles dias com os demais Aliados em Potsdam, na Alemanha ocupada, e queria usar o resultado para ganhar peso político e militar diante dos soviéticos. Era mais um motivo de tensão, já que o meteorologista da equipe, Jack Hubbard, estava prevendo tempestades próximas da data, o que poderia afetar o equipamento.
O processo de levar todo o material de Los Alamos para Jornada del Muerto começou no dia 12, depois de a equipe ter recoberto o núcleo de plutônio da bomba com folhas de níquel e ouro, para evitar a corrosão do material e absorver as partículas radioativas alfa emitidas pelo elemento químico.
No dia seguinte, as peças começaram a ser montadas, e a equipe tomou um susto quando viu que o “concentrador” de urânio que recobriria o plutônio não parecia se encaixar direito. Eles perceberam que o problema era a diferença de temperatura -a radioatividade do plutônio era suficiente para esquentá-lo, enquanto o urânio estava mais frio. Bastou deixar as peças em contato para que o encaixe enfim desse certo.
Depois foi a vez dos explosivos convencionais, em parte presos no formato certo com a ajuda de fita adesiva. A bomba, por fim, foi levada para o alto da torre por um guindaste elétrico, e militares colocaram uma pilha de colchões embaixo, só para o caso de acontecer algum acidente.
Membros do projeto fizeram apostas sobre qual seria a força da explosão, conta o jornalista americano Richard Rhodes no livro “The Making of the Atomic Bomb” (“A Criação da Bomba Atômica”, sem versão brasileira).
Houve quem apostasse que não aconteceria nada, enquanto o italiano Enrico Fermi, já então ganhador do Nobel, mencionou a possibilidade de que a explosão incendiasse a atmosfera, chegando a destruir o Novo México ou mesmo o mundo inteiro (os cálculos da equipe sugeriam que isso era praticamente impossível).
Hubbard, o meteorologista, garantiu que, pouco antes do amanhecer do dia 16, as tempestades parariam, o que de fato aconteceu. A maior parte da equipe de Los Alamos chegou ao posto de observação a 32 km de distância.
“Mandaram que ficássemos deitados na areia, com o rosto virado para o lado oposto ao da explosão e cobrindo a cabeça com os braços”, recordou mais tarde o físico húngaro Edward Teller. “Ninguém obedeceu. Estávamos determinados a olhar nos olhos da fera.” Vários dos cientistas passaram loção contra queimaduras no corpo, colocaram óculos escuros e se prepararam para observar o teste com máscaras de soldador.
Quando a detonação enfim aconteceu, um turbilhão de sensações inesperadas atingiu os observadores. Em primeiro lugar, foi como se a madrugada virasse dia claro por alguns segundos -quem não cobriu os olhos com alguma proteção chegou a ficar cego por meio minuto.
O barulho tremendo, o calor e a onda de choque provocadas pela explosão chegaram mais tarde, assim como a mudança de cores da luz -vermelha, azul e arroxeada- e a altura alcançada pelo “cogumelo” da bomba na atmosfera.
As primeiras vítimas da nova tecnologia foram coelhos do deserto, mortos a uma distância de mais de 700 metros da torre.
Depois de parabenizar os coordenadores da equipe pelo sucesso do método empregado na bomba, o coordenador do teste, Kenneth Bainbridge, virou-se para Oppenheimer e disse: “Agora somos todos filhos da puta”.