SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Quilombolas e indígenas da cidade de Oriximiná (PA), na Amazônia, têm enfrentado incertezas sobre o futuro, causadas justamente pelo processo que deveria dar segurança para essas comunidades: a regularização de território.
A terra indígena Kaxuyana-Tunayana está em processo de demarcação. A área traçada pelos estudos do governo federal, no norte do Pará, tem mais de 2 milhões de hectares. Cerca de 900 pessoas vivem no local.
O problema é que parte desse território já tem dono, sendo destinado para o quilombo Cachoeira Porteira.
Os quilombolas conseguiram a regularização há sete anos. O título foi concedido pelo Instituto de Terras do Pará (Iterpa), em 2018.
Segundo moradores da região, as duas comunidades são vizinhas há quase 200 anos e viviam em colaboração antes do início desse processo de regularização.
A área sobreposta é rica em castanheiras, e o fruto é uma das principais fontes de renda dos quilombolas, além de muito utilizada na alimentação. Por isso, de acordo com eles, existia um acordo informal entre as comunidades para que esse território permanecesse com o quilombo ou fosse de uso comum.
A Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) se recusa a considerar tal acordo. A atuação da entidade tem estimulado uma disputa territorial entre as duas comunidades, segundo parte dos moradores da região e MPF (Ministério Público Federal).
A Folha entrou em contato com o Ministério dos Povos Indígenas. A pasta não respondeu e pediu que as questões fossem encaminhadas para a Funai.
Procurada por e-mail, telefone e WhatsApp de 4 a 9 de julho, a fundação não respondeu os questionamentos da reportagem.
Segundo moradores da região, que pediram para não serem identificados, parte da comunidade indígena teme que a regularização do território demore mais 10 ou 20 anos para ser concluída, caso o traçado já definido no processo de demarcação seja mudado. Essa percepção estaria sendo estimulada por membros da Funai.
A reportagem procurou líderes do território indígena, que preferiram não dar entrevista e afirmaram que o governo federal é que precisa explicar a sobreposição de áreas.
De outro lado, caso o processo de regularização da terra indígena seja concluído, quilombolas temem que a titulação do quilombo seja anulada e eles percam o direito ao território já oficializado.
No final de junho, o MPF entrou na Justiça com pedido de decisão urgente para obrigar a União e a Funai a adotarem medidas que protejam a convivência pacífica na região.
Segundo o MPF, a ação é uma resposta à “grave e prolongada omissão” da União e da Funai. No pedido, o órgão corrobora os relatos feitos à reportagem de que nessa área de sobreposição as comunidades possuem “redes de ajuda mútua, cultural, familiar, histórica e secular de interações e coexistência, que remontam pelo menos ao século 19”.
No entanto, diz o MPF, a Funai tem atuado de forma “compartimentalizada, sectária e não dialógica, sem reconhecer formalmente a sobreposição com o território quilombola” o que, segundo o órgão, tem gerado “insegurança jurídica” e estimulado “disputas territoriais antes inexistentes”.
A ação descreve a atuação da Funai como “esquizofrênica”, “caótica” e “confusa”, por não conciliar os interesses. O MPF diz que a Funai não tem respondido às tentativas de diálogo.
Membros do Judiciário consultados pela reportagem afirmam que existem ferramentas que permitem uma solução conciliada sem atrasar os trabalhos de regularização já executados e que, por isso, não se justifica a negativa da Funai em buscar um acordo para a sobreposição.
“A autarquia atua sob a premissa de uma suposta precedência dos direitos indígenas sobre os de outras comunidades, o que poderia, no limite, levar à anulação do título quilombola e à remoção forçada da comunidade. Essa interpretação, para o MPF, é equivocada e desconsidera a inexistência de hierarquia entre os direitos territoriais de povos tradicionais garantidos pela Constituição”, aponta o órgão.
“O que está em risco aqui não é apenas um título de território, mas a própria dignidade de dois povos que sempre conviveram com respeito”, afirma a antropóloga Juliene Santos, moradora do quilombo Cachoeira Porteira.
“Não há conflito entre nós. O verdadeiro conflito vem da omissão do Estado, que insiste em agir sem diálogo, sem a consulta prévia e sem reconhecer a complexidade das relações inter-étnicas, sobretudo na amazônia, onde esses povos são interlaçados”, diz.
Ela enfatiza que os quilombolas não são contrários à demarcação da terra indígena, mas pedem que não seja ignorada a regularização do quilombo feita pelo governo do Pará, em 2018. Ela diz ainda temer que esse tipo de atuação governamental incentive rivalidades que, até o momento, ainda não existem.
“Ao tratar a titulação quilombola como inferior, anulável, frente a demarcação indígena, o Estado atua como um agente produtor de desigualdade entre os povos”, diz Juliene.
O Ministério da Igualdade Racial afirma que está em conversa com líderes do quilombo e com o MPF, acompanhando e articulando diálogos.
A pasta diz que solicitou uma reunião com a Funai, prevista para acontecer ainda neste mês. O encontro será intermediado pela Casa Civil, já que a autarquia responde a outro ministério.
“O objetivo é constituir uma instância deliberativa que consiga compatibilizar os direitos dos dois públicos, ambos com proteção na Constituição de 1988, sem existência de hierarquia ou privilégio de um sobre o outro”, diz a pasta.