SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O que resta de uma vida quando a narrativa pública a esvazia de humanidade, reduzindo-a a um corpo, um acidente ou uma fofoca? Em “Jayne Mansfield, Minha Mãe”, documentário dirigido e narrado por Mariska Hargitay, a resposta vem em forma de uma paciente escavação arqueológica sobre os escombros de uma existência fragmentada pela fama.

Jayne Mansfield, eternamente congelada no imaginário como a “loira burra” de Hollywood, é finalmente revelada em suas contradições: a artista séria, a poliglota, a mãe que escrevia poemas para os filhos, mas também a mulher que, entendendo as regras do jogo, foi por ele consumida.

O filme joga luz sobre a crueldade da indústria do entretenimento, que transformou Jayne em caricatura, e também serve como ato de reparação afetiva. Mariska, que tinha três anos quando sobreviveu ao acidente que matou a mãe em 1967, não guarda lembranças diretas de Jayne. Cresceu entre ecos: a mãe luminosa descrita pelos irmãos contrastava com a “Marilyn Monroe de segunda classe” vendida pela mídia.

Aos 30 anos, descobriu ainda outra camada de silêncio: Mickey Hargitay, o homem que a criou, não era seu pai biológico. A verdade, revelada por acaso por um fã, apontava para Nelson Sardelli, cantor italiano com quem Jayne teve um breve romance.

A busca de Mariska por Jayne –ou por uma versão que transcendesse o mito– é conduzida com a meticulosidade de uma detetive e a vulnerabilidade de uma filha. Ela revisita a mansão rosa de Beverly Hills (agora demolida), abre armários intocados por décadas, reencontra Sardelli já idoso e ri com ele, como se o tempo tivesse transformado a dor em algo menos agudo, mas não menos significativo.

Há uma cena particularmente emblemática: Mariska e os irmãos descobrem o Globo de Ouro de 1956 de Jayne, prêmio que ela mesma acabaria conquistando anos depois. O objeto, enterrado no passado, torna-se um símbolo daquilo que as une além da morte.

O documentário evita a armadilha da nostalgia ou do revisionismo fácil. Jayne não é santificada, nem sua tragédia, explorada. Em vez disso, o filme expõe a violência sutil de uma indústria que a obrigou a se tornar uma paródia de si mesma. Em uma cena significativa, Jayne toca violino em um programa de TV, concentrada, até ser interrompida pelo apresentador: “Quem se importa? Me beija!” A plateia ri. Ela sorri, mas a humilhação é palpável.

Groucho Marx, um dos poucos que enxergou além do personagem, disse-lhe: “Você não é a loira burra que finge ser. As pessoas deviam saber que você é brilhante.” Jayne responde, com ironia resignada: “Acho que tudo isso faz parte do papel que desempenho como atriz.”

A força do filme está em sua recusa em simplificar. Mariska não substitui a lenda por uma versão edulcorada, mas devolve a Jayne o direito à complexidade. Há uma simetria dolorosa em suas histórias: ambas perderam um de seus pais aos três anos; ambas carregaram o luto como sombra. Mas enquanto Jayne foi devorada pela máquina hollywoodiana, Mariska usou sua carreira para subvertê-la –sua personagem em “Law & Order: SVU”, Olivia Benson, é tudo o que Jayne talvez almejasse ser: respeitada, indomável, dona de sua própria narrativa.

No final, “Jayne Mansfield, Minha Mãe” não é sobre um acidente, um escândalo ou mesmo um segredo de paternidade. É sobre uma sala modesta onde Mariska, Sardelli e suas meias-irmãs conversam e riem de uma piada sobre a idade do pai. É sobre o que poderia ter sido, o que nunca foi, e o que, de alguma forma, ainda pode ser. Jayne Mansfield morreu duas vezes –na estrada em 1967 e depois na memória coletiva, reduzida a um clichê. Este documentário é seu terceiro ato: um belíssimo e emocionante reencontro.

Jayne Mansfield, Minha Mãe

Onde: Max

Classificação: 10 anos

Autoria: Mariska Hargitay

Produção: Mariska Hargitay, Lauran Bromley, Trish Adlesic, Nancy Abraham, Lisa Heller, Anna Klein