AIX-EN-PROVENCE, FRANÇA (FOLHAPRESS) – A voz da albanesa Ermonela Jaho, de 51 anos, soa através das pedras que erguem, desde a Idade Média, o Palais de l’archevêché.
Dentro dele, a soprano, um dos nomes mais importantes da ópera do nosso tempo, ensaiava, no palco do teatro a céu aberto montado nos jardins, o repertório a ser apresentado no tradicional Festival de Aix-en-Provence, que acontece agora no sul da França. Nas ruas vizinhas ao edifício, os passantes diminuíam o ritmo só para apreciar a voz da cantora.
“Eu não quero mais nada da minha carreira e não tenho mais sonhos, até porque todos já foram realizados”, diz Jaho, num dos salões do palácio, transformados em camarim. “Cheguei ao topo da música.”
A sinceridade com que a artista analisa a própria trajetória não significa, porém, inércia. Além da agenda lotada, Jaho não se furta a expressar as suas opiniões sobre os temas mais candentes da arte lírica. Em sua visão, a atual era dos diretores cênicos superpoderosos, que fazem o que querem, mudam libretos, propõem por vezes ambientações absurdas, acaba prejudicando a arte.
Uma boa montagem, segundo ela, é resultado de um trabalho em equipe, num esforço entre o maestro, os cantores, a orquestra e o encenador.
“Essa nossa era dos diretores é horrível para a ópera e talvez só afaste as pessoas”, afirma ela. “Não acho que as montagens precisam iguais às de Franco Zeffirelli, mas não se pode mudar a história. Quer fazer uma ambientação contemporânea? Claro, desde que haja sentido. Os encenadores, meu deus, mas a culpa é de quem manda nos teatros. Já me fizeram cantar ‘La Bohème’ com um cenário que se passava na lua. Foi bem difícil trabalhar.”
Em Aix-en-Provence, Jaho se apresenta ao lado de sua sobrinha, a pianista Pantesilena Jaho, explorando o gênero “romanza”, pequenas peças escritas para voz ou instrumento que se distinguem pela expressividade melódica.
Analisando a escolha do repertório, é possível ver uma progressão da tradição italiana, indo de Gaetano Donizetti e seu “Lamento pela morte de Bellini” até Giacomo Puccini, com peças como “Sol e Amor” e “Sonho de Ouro”, passando por obras de Francesco Tosti. São composições que correspondem ao desejo da soprano de garimpar melodias agora esquecidas.
Jaho cresceu rodeada por dramas. Em casa, foi objeto da inveja da própria mãe, que nunca conseguiu realizar o sonho de ser uma cantora. Ao mesmo tempo, cresceu na ditadura comunista, com muita tristeza, ela conta. Um dos países mais pobres da Europa, a Albânia teve seu território, na região dos Balcãs, invadido diversas vezes ao longo da história.
“Venho dos Balcãs, gostamos de sangue e tragédia”, diz ela, fazendo um movimento, como se estivesse cortando os pulsos. “Talvez para mim quanto mais drama melhor.”
Jaho deixa isso claro no modo como responde às perguntas, com a mesma emoção e o mesmo gestual apelativo com que interpreta árias em cena. Ela é a mais perfeita “tragédienne” e seu sucesso pode ser explicado, até aqui, sobretudo por duas personagens.
Ela é a mais perfeita “tragédienne” e seu sucesso pode ser explicado, até aqui, sobretudo por duas personagens.
A primeira delas é Violeta, de “La Traviata”, obra de Giuseppe Verdi. Talvez ninguém cante melhor esse papel do que Jaho, sobretudo a ária final, “Addio Del Passato”, ou adeus ao passado em português. Nesse momento, é o fim da ópera, e Violeta está prestes a morrer. “Minha Violeta hoje é ainda mais dramática do que no passado. Trabalho com a ideia de lutar para conseguir respirar, mesmo com o pulmão falhando”, diz ela. É impossível não se lembrar de sua imagem na montagem da Royal Opera House, com o rosto pálido, os cabelos desgrenhados e a sua bata suja de sangue.
A outra personagem é Cio-Cio-San, a gueixa de “Madame Butterfly”, de Giacomo Puccini. É um papel que ajudou a definir Jaho como grande intérprete da chamada corrente verista da ópera, conhecida por certo exagero. “A emoção ainda é um tema contemporâneo. Quem não quer um amor incondicional? O lado sentimental precisa ser verdadeiro no palco, então penso que o segredo é não imitar ninguém, é exagerar com razão.”
Tendo realizado todos os seus sonhos, Jaho conta gostar da ideia de inspirar as novas gerações de cantores. “Os jovens estão completamente perdidos. Acham que ter mais curtidas nas redes significa cantar bem. Isso não é arte”, afirma. “Vou te confessar que gosto um pouquinho de ser reconhecida como diva, mas o dever de uma cantora lírica é servir à música e, como na Grécia Antiga, provocar catarse.”