SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Gigantes da tecnologia costumam vender suas inovações como soluções para problemas da humanidade. Inteligência artificial para facilitar tarefas, carro elétrico para reduzir emissões e por aí vai. Não é novidade, no entanto, que, através do discurso de “libertação”, as big techs também estiveram no centro de grandes escândalos em relação a privacidade e monopólios de mercado, enfrentando críticas de governos e ativistas pelo mundo.

No livro “Estrada para lugar nenhum: O que o Vale do Silício não entende sobre o futuro dos transportes”, o jornalista Paris Marx se une aos críticos ao argumentar que as inovações das big techs apenas refletem uma visão limitada dos grandes bilionários de tecnologia.

“Muitas vezes esse discurso é acompanhado pela ressalva de que você só precisa esperar alguns anos e os benefícios vão aparecer. Para os líderes políticos, é muito fácil dizer que a indústria de tecnologia tem a solução e não tomar ações concretas para solucionar problemas. A solução nunca chega, mas a indústria conseguiu lançar qualquer produto ou serviço que estava tentando nos vender”, diz o autor em entrevista à Folha de S.Paulo.

Essa visão é o que Marx -o jornalista, não o filósofo- denomina de “solucionismo tecnológico”, termo cunhado pelo também crítico de tecnologia Evgeny Morozov para definir a busca por soluções atraentes e de curto prazo, vindas da indústria de tecnologia, para problemas complexos. O resultado, no entanto, são ações que atendem aos interesses de seus criadores e desconsideram impactos na maioria da população.

Em seu livro, Marx analisa o setor de transporte e usa como exemplo o carro elétrico, promovido como uma das soluções para a crise climática, mas que, para o autor, é um caso clássico de “greenwashing”.

Primeiro porque veículos elétricos não são exatamente uma novidade. No início do século 20, os modelos Baker Electric Coupe e Riker Electric Roadster, automóveis movidos a bateria, já eram usados pelos americanos, e Nova York chegou a ter cerca de um terço de sua frota de táxis composta por elétricos. Eles, no entanto, perderam espaço para carros movidos a gasolina, que se tornaram mais acessíveis no país impulsionados por incentivos fiscais à indústria petrolífera.

Assim, a nova onda de eletrificação liderada pela Tesla, de Elon Musk, seria uma nova tentativa, que pode inclusive enfrentar os mesmos problemas de um século atrás, com os novos cortes do governo de Donald Trump a incentivos a carros elétricos e seu discurso de glorificação de combustíveis fósseis.

Mas Marx destaca justamente a limitação do discurso em torno dos carros elétricos, que de fato reduzem emissões de carbono, mas também causam impacto ambiental durante seu ciclo de produção. Isso porque a fabricação de baterias para veículos elétricos exige extração mineral intensiva, que muitas vezes têm impacto em comunidades locais.

Na República Democrática do Congo, por exemplo, onde há extração de cobalto -um dos componentes para fabricação das baterias de íon-lítio de carros elétricos-, a Unicef estimava em 2019 que havia cerca de 40 mil crianças trabalhando na mineração, o que levou big techs a serem acusadas de lucrar com trabalho infantil.

Mas não é preciso ir tão longe: a extração na região entre Argentina, Bolívia e Chile conhecida como “triângulo do lítio” polui fontes locais e afeta comunidades indígenas, que protestam contra a exploração. No Brasil, indígenas e quilombolas relatam impactos ambientais da extração de lítio no Vale do Jequitinhonha.

Há ainda outros problemas que podem impactar a vida urbana. Carros elétricos tendem a ser mais pesados que os movidos a combustão interna justamente por conta de suas baterias, e acidentes com automóveis pesados são mais letais, representando um perigo maior para o tráfego.

Além disso, mesmo que sem emissões, veículos elétricos ainda causam poluição do ar através do desgaste de pneus e pastilhas de freio; ou seja, ainda prejudicam a saúde humana na esfera local. E algo um tanto óbvio: se todo mundo trocar o carro por um elétrico, você ainda ficará preso por horas no trânsito.

“Os carros elétricos podem ser parte dessa solução, mas todos os problemas que vêm de um sistema baseado em carros permanecem, certo? Nada disso realmente muda. Eu esperaria que, enquanto estamos fabricando carros elétricos, também reconhecêssemos que o automóvel não pode ser uma forma de transporte em massa como o posicionamos no passado”, diz Marx.

O argumento do autor, que também apresenta o podcast “Tech Won’t Save Us” (“A tecnologia não vai nos salvar”, em tradução literal), é que o problema não reside apenas no tipo de combustível, mas no sistema de transporte centrado no automóvel particular como um todo, que seria, em si, insustentável. Congestionamento, poluição e ineficiência de recursos seguiriam existindo numa possível -e distante- massificação de carros elétricos.

Por isso, na visão de Marx, a fé na tecnologia como única via para o progresso só levará a um futuro mais desigual e dependente de interesses corporativos.

Para fugir desse cenário, o autor argumenta que as soluções não estariam em mais tecnologias, mas na política, em especial num planejamento de sistemas de transporte público robustos e acessíveis, que diminuam a dependência de meios de locomoção individuais.

Além disso, seria preciso investir em espaços para pedestres e ciclistas, diminuindo a chamada “hegemonia de carro”.

Em Paris, por exemplo, a prefeitura comandada por Anne Hidalgo realizou esforços nos últimos anos para reduzir o tráfego de automóveis. Cerca de cem ruas da capital francesa são fechadas exclusivamente para pedestres, e há uma campanha para que turistas “descubram a cidade sem carros”. Neste ano, os parisienses aprovaram um referendo para converter mais de 500 ruas em espaços para pedestres.

Outro exemplo é a cidade de Oslo, na Noruega, que também investiu em fechar ruas, dificultando a mobilidade com carros. Em 2019, conseguiu reduzir a zero o número de fatalidades com pedestres em suas ruas.

Para Marx, esses exemplos podem combater o domínio dos automóveis -que, ele lembra, não surgiu do nada, mas é fruto de um intenso lobby de montadoras nas últimas décadas.

“Se dermos todo esse espaço aos carros e houver tão pouco espaço para pedestres ou outra forma de transporte, naturalmente estamos encorajando as pessoas a pegarem carros. Mas se começarmos a esculpir parte desse espaço para dar a bicicletas ou mais espaços para caminhada, tornaremos esses locais mais seguros. Fazer ciclovias custa menos que construir grandes expansões de sistemas de metrô. É algo alcançável para muitas cidades diferentes ao redor do mundo”, diz o autor.