AVIGNON, FRANÇA (FOLHAPRESS) – É tanta peça em cartaz que Dioniso resolveu aparecer no Festival de Avignon, no sul da França. O deus do vinho e do teatro, segundo a mitologia grega, estava em uma das ruas mais movimentadas da cidade, no início da semana passada, e perguntava aos passantes se eles gostavam de sua bebida. Em caso de resposta afirmativa, o transeunte era convidado a ir a uma das sessões de “O Néctar dos Deuses”, espetáculo escrito pelo parisiense Hugo Klein, de 35 anos, que atua em cena, interpretando a deidade. “Não temos escolha em Avignon, precisamos ir às ruas para atrair o público”, diz ele, repuxando os panos brancos que serviam, provisoriamente, como seu figurino.
“Tento várias técnicas para chamar a atenção das pessoas e a que mais deu certo foi brincar com a temática da peça, que é a história do vinho.”
“O Néctar dos Deuses” é somente um dos 1.600 títulos encenados no “Off”, a mostra paralela, desta 79ª edição. Durante três semanas, vale tudo em Avignon, onde todo artista é artista de rua. Lá estão eles, um depois do outro, distribuindo o “flyer” de seus respectivos espetáculos. Aos atores é somada a presença de jornalistas, programadores e turistas do mundo todo, que flanam em noites ensolaradas de verão. Com os bares e os cafés abertos até mais tarde, o clima do festival, uma espécie de Copa do Mundo das artes cênicas, é de carnaval.
“Aqui em Avignon não adianta fazer propaganda de peça em rede social, o que importa é a rua”, afirma Matilde Chatin, de 22 anos, que estrela “O Fabuloso Destino de Matilde Chatin”, uma paródia do filme “O Fabuloso Destino de Amélie Poulain”, que tem texto e canções da própria atriz, que nasceu e vive em Bordeaux.
Algumas produções chegam a trazer à via pública parte do cenário das montagens. É o caso de “O Último Dia de Pierre”, que, naquela tarde, encenava o féretro do personagem-título para todo mundo ver. Nas fachadas dos edifícios, são afixados cartazes dos espetáculos, de modo a não sobrar quase nenhum espaço vazio. O resultado é uma paisagem muito colorida e vibrante, um teatro a céu aberto.
No “Off”, qualquer um pode encenar um espetáculo desde que faça o cadastro na instituição organizadora do festival -e pague milhares de euros para alugar uma sala. Nesse circuito, que neste ano homenageia o Brasil, surgem todos os anos revelações do mundo do teatro.
Quanto aos temas e aos estilos das produções, há tudo o que se possa imaginar. Com o tempo, o “Off” só fez aumentar e hoje acontece ao mesmo tempo do “In”, a mostra oficial, em que os grandes nomes das artes da cena são convidados a mostrar seus novos trabalhos, com todo um pensamento curatorial por trás.
Mesmo com essa equiparação, talvez nunca tenha havido uma separação tão rígida entre as duas mostras. Quem fala é o povo. À boca pequena, a população local diz achar muito hermética a seleção feita para o “In”, destinada a quem estudou na Sorbonne para ler os pós-estruturalistas. Em geral, os espetáculos do “Off” de fato são mais acessíveis. Também é verdade que o próprio cidadão de Avignon pouco frequenta o festival. A maioria da plateia é composta, sobretudo, por estrangeiros e por parisienses -o que aos olhos de um sudista, na França, quer dizer a mesma coisa.
“É verdade que o ‘In’ tem espetáculos intelectualizados, enquanto o ‘off’ concentra as atrações mais populares”, diz Klein. “O hermetismo pode afastar as pessoas do teatro. Eu sou da ideia que o teatro precisa ser para todos, e não reservado para alguns.” É um incômodo que diz muito sobre as fofocas da edição.
“Nôt”, coreografia da cabo-verdiana Marlene Monteiro Freitas, é considerada um fracasso. Na noite de estreia, os bailarinos foram vaiados e muitas pessoas deixaram o palco principal de Avignon. A mesma dinâmica se repetiu em apresentações seguintes. A verdade é que nem os críticos de dança apreenderam os desígnios de Freitas. Em contraste, a montagem de “O Pato Selvagem”, de Henrik Ibsen, concebida pelo alemão Thomas Ostermeier, é bem elogiada por público e imprensa.
Desde 1995, o centro histórico de Avignon é patrimônio mundial da Unesco. A cidade é toda medieval, com muros e suas torres. É famosa por abrigar o Palácio dos Papas, onde os pontífices da Igreja Católica se estabeleceram por um período. Outro símbolo da cidade é a Ponte de Saint-Bénezet, imortalizada na cançoneta “Sur le Pont d’Avignon”, ou sobre a ponte de Avignon, em português.
O Festival de teatro foi fundado em 1947 por Jean Vilar, inicialmente como uma Semana de Artes Cênicas.
O comércio local comemora a chegada da alta estação. Joshua Bortreau, de 20 anos, vende discos, vinis e DVDs. Ele conta que só abre aos domingos no mês de julho. “O número de turistas cai depois do festival mas ainda tenho outro tipo de clientela. As pessoas de Avignon não frequentam o festival”, diz ele. “O evento é mais para os estrangeiros, que chegam aqui na minha loja procurando umas coisas bobas do tipo Mireille Mathieu. Ela é de Avignon.”
*O jornalista viajou a convite da temporada Brasil-França