AVIGNON, FRANÇA (FOLHAPRESS) – Dois focos de luz se posicionam no palco para cegar os olhos da plateia. De repente, os holofotes se apagam, a sala fica escura e o teatro começa a tremer. O barulho das bombas se soma ao som das metralhadoras, fazendo vibrar as cadeiras, as coxias e até as paredes. Com a peça “Quand J’Ai Vu La Mer”, ou quando eu vi o mar, Ali Chahrour, diretor teatral, bailarino e coreógrafo libanês, levou o horror da guerra ao Festival de Avignon, que acontece agora no sul da França, e incendiou a mostra oficial, obtendo repercussão do público e da crítica.

Se há um denominador comum entre as obras de Chahrour, talvez seja o modo como, pouco a pouco, suas encenações se transmutam em experiências dilacerantes, definidas por um sentido de urgência política, ancoradas no mundo real. “Israel está tentando eliminar toda a população, fazendo uma limpeza étnica no caso dos palestinos. Eles estão nos matando com as mais sofisticadas bombas”, afirma Chahrour, lembrando a noite da estreia da peça, no ano passado, em Beirute, durante um bombardeio israelense. “Todo o Oriente Médio está em perigo agora. É como se Israel tivesse implantado um câncer, que agora está se espalhando. É uma máquina de assassinar seres humanos. Matam na Palestina, no Líbano e matam no Irã.”

O diretor diz que concebe a sua arte como uma plataforma de justiça, até porque não sabe pegar em armas. No caso de “Quand J’Ai Vu La Mer”, Chahrour decidiu abordar o tema da Kafala, um sistema de escravidão moderna, exercido por famílias ricas do Líbano, que consiste no uso da mão de obra de imigrantes, a maioria mulheres africanas e do sul asiático para tarefas domésticas. As empregadas não têm direitos trabalhistas e são expostas a longas jornadas e episódios de assédio moral ou sexual. Em geral, ganham salários baixos que podem ser subitamente confiscados. Na Kafala, as famílias têm a posse das empregadas.

No ano passado, as forças de defesa de Israel invadiram o Líbano pela primeira vez desde 2006, quando os dois países travaram uma guerra. O objetivo era atingir o Hezbollah, grupo extremista que atua sobretudo ao sul do território libanês. Com o aumento dos ataques de Israel, as famílias ricas fugiram do país, rumo à Europa ou a outras localidades no Oriente Médio, deixando as empregadas domésticas na rua, em situação de total vulnerabilidade. Esse é o ponto de partida de “Quand J’Ai Vu La Mer”. O título faz referência a um dos áudios que são reproduzidos logo no início do espetáculo. Nele, uma empregada de Beirute diz ter visto o mar pela primeira vez, porque sua “madame” decidiu ir para Dubai, nos Emirados Árabes.

Depois de vários relatos em áudio, três mulheres ganham a cena: Tenei Ahmad, Zena Moussa e Rania Jamal. Cada uma delas conta a sua história nos anos em que trabalharam no sistema da Kafala. Moussa, por exemplo, nasceu na Etiópia e foi para o Líbano para buscar melhores condições de vida. Ela relata ter tido os cabelos cortados por sua patroa, que ainda jogou fora todas as suas roupas. Moussa também foi obrigada a assinar um contrato que a proibia de falar ao telefone. No teatro documentário de Chahrour, é tudo verdade. Os relatos são entremeados por canções entoadas por Lynn Adid e Abed Kobeissy. As três mulheres em cena protagonizam coreografias, que segundo o diretor, funcionam como danças de liberação.

Nascido em Beirute, Chahrour tem frequentado festivais de artes cênicas ao redor do mundo. No ano passado, apresentou o espetáculo “Du Temps Où Ma Mère Racontait”, ou, em português, contado pela minha mãe, na Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, a MITsp. A peça contava a história de sua família. O diretor diz que suas obras estão sempre ancoradas no real, por uma necessidade. “Não tenho escolha, moro no Líbano, estou rodeado por guerras”, diz. “Nenhuma nação no mundo deveria estar neutra diante do que ocorre agora no Oriente Médio. Ou você está do lado da morte ou você é a favor dos direitos humanos. A situação é bem clara. Para mim, essas três mulheres são heroínas da sociedade contemporânea.”

*O jornalista viajou a convite da Temporada Brasil-França.