AVIGNON, FRANÇA (FOLHAPRESS) – As montagens do Teatro do Radeau, uma das companhias mais tradicionais da França, não devem ser escondidas por cortinas. Mesmo antes do início da sessão, é importante que o espectador se confronte com os cenários, construídos em madeira, como se fazia antigamente.

Assim se chega ao centro do pensamento do diretor da trupe, François Tanguy, morto há três anos, agora lembrado na mostra oficial do Festival de Avignon, com suas duas últimas peças.

“Item” e “Par Autan” são exemplares de sua forma singular de conceber a arte teatral, enraizada no sentido etimológico da palavra “teatro”, cuja origem grega quer dizer percepção.

“O teatro, em sua origem, significa um lugar de onde nós olhamos para o mundo, não é só o palco”, diz a atriz Laurence Chable, uma das fundadoras da trupe, minutos depois da primeira sessão de “Item” no festival.

Nas peças do Radeau —ou jangada, uma referência à madeira e à célebre tela “A Jangada da Medusa”, pintada em 1818 por Théodore Géricault—, não existe história, dramaturgia e nem mesmo os atores desenvolvem o trabalho a partir de personagens.

O que está em jogo é envolver o espectador, criando ambientações com os elementos constitutivos da cena —a saber, o som, os fragmentos dos textos escolhidos, a luz e, sobretudo, o cenário. “Nosso teatro não tem um objetivo e não se presta a uma utilidade”, afirma Chable. “François não fazia teatro para mostrar, explicar, justificar, não era isso. Trabalhava a partir de uma junção de elementos, sem procurar provar alguma coisa.”

Em última instância, os espetáculos funcionam à maneira de “tableaux vivants”, quadros vivos, em que os atores manipulam a percepção da plateia, promovendo uma imersão em diferentes ambientes. Além do esmero estético, a linguagem proposta por Tanguy se define pelo seu senso de abstração.

Não à toa, a palavra “item” tem um sentido indefinido, podendo significar qualquer coisa. Contudo, esse “Item”, em específico, se forma a partir de uma colagem com trechos de romances de Kafka, Goethe, Walser e Dostoiévski, além de Ovídio e seu mais famoso poema, “Metamorfoses”. “Minha voz te alcança?/ Ou o vento leva as minhas queixas, enquanto, ingrato, carrega os navios para longe?”, diz os dois primeiros versos do livro oito, declamado pelos cinco atores em cena, incluindo Chable.

Nesse momento, um vento lateral sopra suave, de modo a revolver os lençóis estendidos por sobre o amontoado de móveis da cena, parecida com um apartamento antigo, há muito tempo fechado, que, até pela madeira, oferece uma impressão intimista.

Em paralelo, as luzes amarelas bruxuleiam, posicionadas de modo indireto. Tais efeitos vivificam o significado da obra de Ovídio, introduzindo um certo mistério, marca do Radeau, que embala os espectadores nessa espécie de jangada teatral.

Correspondendo aos textos, ouve-se uma sequência de composições de Bach, Berlioz, Tchaikóvski e John Cage. A escolha das obras literárias e musicais, diz Chable, remete ao processo criativo da companhia, que ocorre por meio de tentativa e erro, em sessões de leitura.

Tanguy não desenvolveu um método para os seus atores. Como não há interpretação de personagens, o integrante do Radeau elabora a sua encenação em situações dramáticas, atento à palavra, ao som e à luz.

A cada cena, os atores entram e saem com molduras, delimitando novos textos e ambientações. Além das composições, há um zumbido permanente em cena, massa sonora de formação diversa, que vai do mugido de vacas até o som das cigarras e o barulho da chuva.

Os cenários do Radeau nunca se encerram, estando sempre em metamorfose. Também é notável o trabalho corporal dos atores, sobretudo porque, dentro de cada uma das molduras, agem com temporalidades distintas, ora ágeis, ora lentas. Em certo sentido, além da música

ambiente, o teatro dessa companhia também é ambiente.

Embora o Radeau permaneça fiel à sua linguagem, cada espetáculo tem uma dinâmica particular. “Par Autan”, a outra peça da companhia que será apresentada na próxima semana em Avignon, faz menção no título ao nome do vento que sopra do alto mar e atravessa as montanhas.

O Autan é conhecido por simbolizar o diabo. Nesse espetáculo, as composições são de Sibelius, Stockhausen e Brahms, e os textos, de Kleist, Tchékhov e Walser. O elenco tem mais dois atores e algumas das passagens musicais são interpretadas por um pianista.

Criado nos anos 1970, o Teatro do Radeau surgiu na cidade de Le Mans, na região central da França. Tanguy só entrou na companhia, em 1982, e logo se tornou o diretor dos espetáculos. Dois anos depois, o Radeau fundou a sua sede, a Fonderie, em uma antiga loja de automóveis.

A trupe ganhou projeção dentro e fora da França e, pouco a pouco, organizou turnês internacionais, que passaram inclusive pelo Brasil. Há duas décadas, o Radeau apresentou o espetáculo “Coda” no Sesc Belenzinho, em São Paulo, e no Festival de Curitiba.

Com a morte de Tanguy, vítima de uma septicemia, o futuro do Radeau é incerto. Ao mesmo tempo que seus integrantes rejeitam criar novos espetáculos, não deixam de encenar o repertório que exerce tanto fascínio nos amantes do teatro e nem deixam de organizar oficinas para jovens atores.

“Decidimos muito rapidamente que deveríamos continuar para mostrar os dois últimos trabalhos de Tanguy, porque temos uma memória viva dele”, diz Chable. “Mas não pretendemos fazer novas peças, porque ele era o centro. Como grande artista, ele não delegava, então isso não pode ser reproduzido. Seria a imitação da alma do poeta que era.”

O jornalista viajou a convite da temporada Brasil-França