AVIGNON, FRANÇA (FOLHAPRESS) – A 79ª edição do Festival de Avignon, um dos mais tradicionais do mundo dedicado às artes cênicas, foi aberta no fim da noite deste sábado, com uma batalha entre vaias e aplausos para a coreógrafa cabo-verdiana Marlene Monteiro Freitas, que apresentou seu novo trabalho, intitulado “Nôt”, no Pátio de Honra do Palácio dos Papas, o palco principal do festival.
Desde o início, a coreografia gerou burburinho no público, que se mostrou incomodado com a obra. Aqui e ali, era possível ouvir tiradas irônicas sobre o espetáculo, além de expressões de descontentamento. Algumas pessoas foram embora durante a apresentação. Freitas, que em 2018 ganhou o Leão de Prata da Bienal de Veneza de Dança, é a artista associada desta edição do Festival de Avignon.
Autora de “Bacantes” e “Guintche”, ela se tornou célebre por criar uma linguagem que explora as deformações do corpo humano, valorizando o grotesco e o bizarro. Seu objetivo, em suma, é tentar atribuir uma forma ao informe. Talvez por isso o espetáculo não tenha sido tão bem recebido pelo público em Avignon. A apresentação se iniciou às 22h, quando os últimos resquícios do dia davam lugar à escuridão. A escolha do horário remeteu à ideia de transformação e ao próprio nome da obra. Afinal de contas, “Nôt”, em crioulo de Cabo Verde, significa noite. A palavra também designa a deusa noite, na mitologia nórdica.
Correspondendo ao desejo do festival de valorizar a cultura do Oriente Médio num contexto de guerras, Freitas desenvolveu a coreografia, inspirada por “As Mil e uma Noites”, clássico da literatura de língua árabe, que passou a ser conhecido no Ocidente, graças a uma tradução para o francês, em 1704. Nos contos, Sherazade inventa histórias para adiar o seu assassinato pelo noivo, o rei Xariar, da Pérsia, que, traído pela ex-mulher, resolve dormir com uma mulher a cada noite, matando-a no dia seguinte. Em “Nôt”, é difícil, porém, identificar referências claras ao livro.
Como é comum na dança contemporânea, Freitas rechaça a literariedade, preferindo articular suas referências por meio de símbolos. Mesmo assim, “Nôt” é, na maior parte do tempo, inapreensível. Na primeira meia hora do espetáculo, não se ouviu música alguma, o que entediou os presentes. Dois dos oito bailarinos da P.OR.K, companhia de Freitas sediada em Lisboa, zanzavam pelo palco e pela plateia, gemendo, de dor e prazer, tentando se expressar sem conseguir.
Marca registrada da coreógrafa, os bailarinos usavam máscaras o tempo todo, deformando seus rostos. O resultado assustou, porque os artistas se tornaram bonecas, típicas de filmes de terror. A cenografia foi composta por duas imensas grades brancas, que fizeram referência aos domínios do rei Persa e reforçaram a ideia de aprisionamento. Nesse ponto, é possível associar “Nôt” à condição de Sherazade e de parte das mulheres, ainda hoje, no Oriente Médio. O que se viu, em seguida, foi uma sequência coreográfica, alicerçada na ideia de ritual, tão presente no mundo árabe. Num dos rituais, a presença de Sherazade pareceu ser evocada por Maria Tembe, bailarina moçambicana nascida sem as duas pernas, que protagonizou movimentos eróticos, como uma odalisca.
Em outro, várias das bonecas assassinas vestiram aventais e, empunhando facas, sugeriram se esfaquear, se sujando de tinta vermelha, para imitar sangue. Foi um morticínio similar ao que ocorreu com as mulheres de “As Mil e uma Noites”. Sob o aspecto musical, Freitas apostou, como sempre, numa combinação desassombrada de repertório, justapondo “As Núpcias”, do russo Igor Stravínski, a canções de Nick Cave ou de seu país.
Decerto, o Cabo Verde continua sendo importante para a coreógrafa. Buscando dar vazão à linguagem dos rituais, Freitas usou como parâmetro o carnaval de São Vicente, a famosa ilha cabo-verdiana. Tanto que a coreografia evolui, consoante a um desfile de rua, com os bailarinos que dançam e tocam instrumentos a um só tempo. No Oriente Médio ou no carnaval de São Vicente, o ritual surge como expressão dionisíaca.
Avignon amanhece agora tentando digerir a festa macabra. Já é forte a repercussão nos jornais, que reproduzem o estranhamento causado por “Nôt”. “O que ocorreu exatamente, no dia 5 de julho, no Palácio dos Papas?”, pergunta a primeira frase da reportagem do Le Monde. Talvez já tenhamos a primeira polêmica do festival.
O jornalista viajou a convite da temporada Brasil-França