SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Na primeira cena de “Pedaço de Mim”, longa de estreia da diretora Anne-Sophie Bailly, uma mãe e seu filho nadam numa piscina, filmados em câmera lenta, seus corpos se movimentando lindamente embaixo d’água. É um começo promissor, que o filme nem sempre irá acompanhar.

A protagonista é Mona, mulher de meia idade interpretada por Laure Calamy -uma atuação que recebeu elogios e críticas na mesma medida. Ela cuida do filho neurodivergente Joel, aliás, Charles Peccia Galletto, um adulto tido como “lento” pela sociedade ao redor.

Por um descuido, Joel engravida sua companheira de trabalho Océane, personagem de Julie Froger, também neurodivergente. A partir desse acidente surge uma crise, tanto na relação mãe e filho como de Mona com os pais de Océane. Estes a acusam de negligenciar os cuidados com o filho, que, segundo eles, teria abusado de uma vulnerável.

Logo vemos que Joel pode ser considerado lento, mas Mona, que é considerada normal e tem a idade da maturidade, em muitos aspectos é mais infantil que ele.

O filme parece então se perguntar o que é a normalidade. Seria normal alguém puxar o tapete de outros no emprego, se embebedar na saída do trabalho e bater em sua esposa, dentro de um matrimônio bem de acordo com a sociedade patriarcal burguesa? Vemos atrocidades das mais diversas todos os dias e a maioria delas é normalizada. Por que neurodivergentes não podem ser considerados normais?

A partir dessa indagação, começamos a perceber que talvez um pouco de independência não fará mal a Joel. Pelo contrário. Talvez se desprender um pouco da mãe seja de fato o que ele precisa, assim como Océane.

Claro que eles precisam de alguns cuidados, de proximidade afetiva, de apoio para decisões mais importantes. Pensando bem, quem não precisa? Talvez algumas pessoas tidas como normais consigam sobreviver melhor à solidão, mas isso não as faz superiores a ninguém.

Cada pessoa tem sua particularidade, todos nós temos nossas limitações. Joel tem rompantes violentos. Mas Mona também, e o pai de Océane, e muitas outras pessoas. O que importa é que Joel é um personagem adorável, assim como Océane. Mesmo Mona, que pode irritar um pouco com suas inconstâncias e um certo exagero na interpretação de Calamy, acaba por conquistar nossa simpatia.

Mona conhece o belga Frank, vivido por Geert Van Rampelberg. Eles voltam a se encontrar na Bélgica, mas na viagem, Joel acaba se perdendo. Encontrado pela polícia, ele é levado para a casa do pai, que mal conhece -e que nós passamos a conhecer, ainda que superficialmente.

Quando Mona vai buscar Joel na casa de seu ex-marido, o filme quase se perde. Ninguém sabe direito o que fazer, e talvez aquele que tenha mais consciência do que se passa no momento seja mesmo Joel. Ali percebemos que sua mãe não é exemplar, e que seu pai nunca soube lidar com o filho com deficiência. De perto, ninguém é normal, com o perdão do clichê.

Formalmente, o longa de Bailly remete ao começo deste século, algo semelhante aos que os irmãos Dardenne faziam em “O Filho”, por exemplo. Isto torna “Pedaço de Mim” mais ultrapassado do que se remetesse aos anos 1970 ou 1980, pois nessas décadas o cinema ainda desfrutava de algum frescor da modernidade e suas radicalizações.

Esse modo de filmar muito de perto, com boa parte da imagem desfocada e uma câmera que parece encurralar os personagens, já teve sua diluição em inúmeras derivações nos últimos anos, tornando-se mesmo um lugar-comum de festivais europeus.

Ainda assim, esse estilo, quando bem trabalhado, rende algumas cenas fortes, como a da piscina no começo, o momento em que Mona conhece Frank, o momento em que o reencontra na Bélgica, e, finalmente, a bela sequência final, que surpreende pela precisão do tom, mesmo dentro de uma certa previsibilidade.

Nada supera, contudo, o movimento de recuo que a câmera faz, filmando do alto e cada vez mais de longe, o aparentemente perdido e desorientado Joel, que acompanha o desfile como mais um na multidão. É um momento muito elogiado pela crítica francesa, com razão.

Essa imagem perturbadora, localizada no centro do filme, o resume e o explica ao mesmo tempo, além de confrontar nossa noção de normalidade. Concordemos ou não com a ideia que ela implica, sua força cinematográfica se afirma. É o mais importante quando analisamos um filme.

Pedaço de Mim

Classificação: 16 anos

Elenco: Laure Calamy, Charles Peccia Galletto, Julie Froger

Produção: França, 2024

Direção: Anne-Sophie Bailly

Avaliação: *Bom*