SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS) – Ao que tudo indica, os seres humanos arcaicos que habitavam o sudoeste da China há mais de 300 mil anos não viviam propriamente na Idade da Pedra –estava mais para a “Idade da Madeira”, a julgar pela diversidade de artefatos feitos com essa matéria-prima que eles usavam em seu cotidiano.
Os instrumentos, analisados num estudo publicado na última quinta-feira (3), surpreenderam os arqueólogos porque não se parecem com quase nada encontrado até hoje em locais habitados por humanos primitivos. Entretanto, a descoberta no sítio de Gantangqing talvez indique que essa raridade é apenas resultado de problemas de preservação em outros locais, e que a madeira pode ter sido tão importante quanto a pedra para os ancestrais da humanidade.
Liderado por Xing Gao, da Academia Chinesa de Ciências, e Bo Li, da Universidade de Wollongong, na Austrália, a pesquisa saiu no periódico especializado americano Science e analisou um total de 35 implementos de madeira, com idade estimada entre 361 mil anos e 250 mil anos.
Tanto a data mais antiga quanto a mais recente precedem em muito o processo de expansão dos seres humanos de anatomia moderna, ou Homo sapiens, a partir de seu berço no continente africano –as primeiras evidências da presença da linhagem H. sapiens na África datam de cerca de 300 mil anos atrás.
Tudo leva a crer, portanto, que os fabricantes das ferramentas de madeira eram membros de linhagens mais arcaicas de hominínios (nome dado às espécies que são mais próximas de nós do que dos chimpanzés atuais). Podem ter sido da espécie Homo erectus, ainda presente na região naquela época, ou mesmo alguns dos misteriosos denisovanos, espécie hoje mais conhecida apenas por seu DNA.
Naquela fase do Pleistoceno (a chamada Era do Gelo), o sítio de Gantangqing ficava nas margens do lago Fuxian, e as camadas de sedimentos do lago nas quais os objetos de madeira foram preservados eram ricas em matéria orgânica e pobres em oxigênio. Ou seja, são as condições ideais para que os instrumentos, feitos principalmente a partir do tronco de pinheiros, fossem preservados.
É claro que, aos olhos de não especialistas, os objetos poderiam ser confundidos com pedaços de madeira carregados por rios, por exemplo. É por isso que Gao, Li e seus colegas utilizaram critérios claros para determinar que eles tinham sido modificados intencionalmente pelos seres humanos arcaicos.
A lista estabelecida por eles no estudo tem cinco itens:
1) escolha intencional de pedaços de madeira com pontas que favoreciam o manuseio
2) marcas que indicam que a madeira foi retrabalhada para adquirir um formato específico
3) superfícies aplainadas
4) evidências de uso (desgastes na ponta, por exemplo)
5) polimento. Todos os objetos de madeira identificados como artefatos se encaixam em pelo menos três dessas categorias.
A maioria dos artefatos recebeu modificações nas pontas, e os artesãos primitivos retiraram a casca da madeira antes de trabalhá-la.
Entre os objetos estão bastões grandes, provavelmente usados para cavar e segurados com ambas as mãos. Outros têm formato bem mais curioso, de gancho, feitos a partir da interface entre a madeira do tronco e o começo das raízes de uma árvore.
Por fim, há instrumentos pequenos (com cinco centímetros de comprimento), pontudos e com forma de losango, que poderiam ter sido usados como sovelas, ou seja, para abrir furos em couro e materiais similares.
Com exceção das sovelas, a maioria dos instrumentos provavelmente era empregada para obter raízes e tubérculos de plantas, de acordo com os arqueólogos. Tanto esse fato quanto a matéria-prima em si traz dados interessantes para compreender o estilo de vida dos humanos primitivos ali, em especial quando comparado ao dos demais hominínios.
Acontece que os outros raros artefatos de madeira com idade comparável achados até agora pareciam corresponder, por exemplo, a lanças. Isso reforçava a imagem dos humanos arcaicos como caçadores por excelência, mas é improvável que eles não incluíssem também boas quantidades de vegetais na sua dieta. O mesmo vale para o uso de madeira, e não de pedra, para fabricar instrumentos.
O mais provável, como a descoberta na China parece indicar, é que o viés de preservação (ou seja, as condições que raramente impedem a decomposição da madeira) tenha feito a pré-história dessa época um cenário em que o uso da pedra e a caça predominavam, embora a situação real fosse mais complexa do que isso.