SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Uma nova frente formada por moradores de diversas regiões de São Paulo declarou guerra a um dos problemas mais comuns na cidade: o barulho. O movimento foi iniciado por vizinhos da avenida Paulista e encontrou eco em outros bairros. Em comum, todos reclamam da falta de respaldo do poder público para minimizar a poluição sonora paulistana.

A ideia é que, com moradores unidos, o movimento ganhe representatividade suficiente para conseguir se reunir com representantes da gestão municipal e do Legislativo paulistano. “O barulho se tornou uma epidemia na cidade, e é como se não tivesse nenhuma preocupação sobre isso”, diz Marcelo Sando, morador da Paulista que mobilizou vizinhos em torno do incômodo causado pelas bandas e músicos independentes que ocupam a avenida aos domingos, quando a via se transforma em uma área de lazer.

“Existe uma normalização em relação à questão do ruído na cidade e não existe um órgão responsável pela poluição sonora”, diz Sando. “É um problema de saúde pública e a solução é política.”

O mesmo tormento é enfrentado pelos moradores do centro desde a concessão do Vale do Anhangabaú à iniciativa privada, quando o espaço passou a receber festas de música eletrônica que atravessam a madrugada.

Aderiram ao movimento também vizinhos do Allianz Parque, do Parque da Água Branca, do Butantã (que sofrem com ruídos de equipamentos do instituto produtor de vacinas instalado no bairro) e do Bom Retiro.

Os organizadores querem reunir também representantes de distritos nas regiões onde há bailes funks, além da criação de um grupo de trabalho sobre barulho causado por obras na cidade. Em junho, a Folha mostrou que um baile na Brasilândia fecha vias e impede moradores de dormir a noite toda aos fins de semana.

Nos primeiros cinco meses deste ano, a Polícia Militar afirmou ter recebido 100.375 chamados relacionados a perturbação do sossego público e “pancadões” na capital e região metropolitana. O número representa uma média de cerca de 600 reclamações por dia. “Manter o combate à poluição sonora é uma das prioridades da atuação preventiva”, disse a corporação.

Integrante da nova frente e vizinha do Allianz Parque, na Pompeia, Jupira Cauhy conta que já sentiu o prédio onde mora trepidar durante o show de um rapper conhecido por estimular o público a pular durante as apresentações. “Nesse dia, eu chamei a Defesa Civil porque tudo tremia, o monitor do meu computador balançava”, diz. “A janela treme, a porta treme. Ficamos com a sensação de pressão sonora no ouvido.”

Morar em um prédio que divide o muro com o Parque da Água Branca, na Barra Funda, foi motivo de sossego para Pedro Grzywacz Neto até 2022, quando, com a concessão à iniciativa privada, vieram os ruídos de reforma dos prédios e, mais recentemente, shows aos finais de semana. “A gente se sentia morando em uma rodoviária. Muita gente aqui ficou doente”, diz o morador que também aderiu à iniciativa.

No Butantã, a fonte de ruído são os geradores de energia instalados no Instituto Butantan para abastecer o complexo fabril de vacinas e o Biotério Central, onde são criados os animais de laboratório. “É um aspirador de pó ligado 24 horas por dia, deixa qualquer um maluco”, diz a moradora Patricia Coelho, vizinha há 25 anos do instituto e representante do bairro no grupo. “Instalar janela antirruído não é suficiente, então, estamos comprando protetores auriculares para viver dentro dos apartamentos.”

O vizinho Vanderlei da Cruz Garcia diz que acionou a prefeitura, mas que recebeu como resposta que a questão está fora do alcance de atuação do Psiu (Programa de Silêncio Urbano). “Para quem a gente reclama? Nós fazemos parte do problema e queremos ser ouvidos.”

Dilema semelhante atormenta quem mora no entorno do Vale do Anhangabaú, no centro. Além da música alta durante os shows e festas, os moradores dos prédios próximos têm os apartamentos invadidos por feixes de luzes dos canhões de iluminação. “As pessoas passaram a tomar ansiolíticos, têm crise de ansiedade dias antes do evento”, diz a moradora Barbara Oliveira, que afirma ter medido de 75 a 80 decibéis durante a madrugada. “Temos que achar outro lugar para dormir.”

O síndico de um dos edifícios afetado conta que procurou a subprefeitura da Sé em busca de solução, mas ouviu que os shows ocorrem de acordo com a legislação. “Estamos habituados aos ruídos do dia a dia da cidade, mas as festas acontecem de forma desrespeitosa, somos afetados por canhões de luz. Viramos cenários”, diz Antonio Cunha.

Em nota, a concessionária que administra o Anhangabaú afirmou que tem tomado medidas para melhorar a convivência com a cidade, como a reorientação dos palcos para evitar a dispersão sonora para a vizinhança. De acordo com a empresa, os eventos “seguem rigorosamente a legislação vigente e são executados com todas as documentações e autorizações necessárias”.

O mesmo argumento é dado pela administradora do Allianz Parque que afirmou, em nota, seguir as autorizações legais exigidas e a legislação vigente para a realização dos eventos, além de manter um canal de comunicação com os vizinhos.

A legislação seguida citada pelas empresas teve mudança no fim do ano passado, quando shows e eventos de grande porte autorizados pela prefeitura se tornaram isentos de fiscalização por excesso de barulho e, portanto, deixaram de ter limites de emissão de ruído. Com isso, o teto de até 60 decibéis, previsto em zonas mistas, segundo a Lei de Zoneamento, deixou de valer nesses casos.

As diretrizes da OMS (Organização Mundial da Saúde) recomendam menos de 30 decibéis nos quartos durante a noite para um sono de qualidade. No período noturno, em geral, o recomendado pela entidade é que o barulho não supere 40 decibéis.

Procurada, a gestão do prefeito Ricardo Nunes (MDB), autora da mudança na lei, afirmou que “são apresentadas as normas e exigências necessárias” quando é emitido um alvará para eventos, e que as ações contra pancadões e perturbação do sossego foram intensificadas em toda a cidade.

A lei municipal faz parte do emaranhado jurídico que dificulta a regulação do tema, segundo o advogado Waldir Arruda Miranda. “Existe uma colmeia de legislação envolvida, com leis e decretos nas esferas municipal, estadual e federal”, diz.

Ao mesmo tempo em que a prefeitura retirou os limites de barulho para shows e eventos na cidade, no âmbito federal há um artigo da Lei das Contravenções Penais que condena a perturbação do sossego, em qualquer dia e horário. O flagrante prevê a lavratura de um termo circunstanciado, segundo a lei.

Na mesma esfera, há a lei de crimes ambientais, e um artigo Direitos de Vizinhança, do Código Civil, que prevê multa a interferências que afetem a saúde dos moradores.

Procurado, o Instituto Butantan afirmou que os geradores ficaram ligados entre os dias 24 e 26 de junho e 30 de junho e 2 de julho para testes operacionais da nova Usina de Cogeração de Energia, e que se tratou de uma medida pontual. “Durante os testes, os geradores convencionais permaneceram ligados continuamente, o que gerou um aumento momentâneo no nível de ruído.”

A Reserva Parques, concessionária do Parque da Água Branca, informou que realizou duas apresentações musicais neste ano, que seguiram a legislação vigente de emissão de ruídos.