PARIS, FRANÇA (FOLHAPRESS) – Três obras de Cildo Meireles, representativas de momentos diferentes de sua trajetória e atualmente em exposição em diferentes cidades francesas, demonstram a atualidade da obra do artista plástico brasileiro, pois tratam de preocupações que nunca foram tão prementes.
“Cruzeiro do Sul” (1969), exposta a partir desta quinta (3) e até o próximo dia 14 na Orangerie do Senado, em Paris, chama a atenção para a situação dos povos indígenas. Já a instalação “Marulho” (1991-97), na histórica abadia do Monte Saint-Michel, na Normandia, desperta a consciência para a questão ambiental. E “Alto” (2024), que ficará até novembro em Arles, na Provença, faz refletir sobre o descompasso entre o mundo físico e o sonoro.
“Às vezes acontece, né? Foi uma coincidência. Esses projetos já estavam em andamento”, diz Meireles sobre a tripla presença, em plena temporada do ano do Brasil na França, que faz com que ao mesmo tempo estejam em exposição Anna Maria Maiolino (Museu Picasso), Lucas Arruda (Museu d’Orsay e Carré d’Art de Nîmes) e Ernesto Neto (Grand Palais), entre outros artistas brasileiros.
Uma das obras mais emblemáticas de Meireles, “Cruzeiro do Sul” encarna o que ele definiu com o neologismo “humiliminimalismo”, ou o “minimalismo do muito humilde”. Um cubo de 9 milímetros de lado combina duas madeiras, carvalho e pinheiro, usadas para produzir o fogo, um ritual sagrado na cosmologia tupi.
Criada em plena ditadura militar, a obra reflete em parte o contato que Meireles teve desde a infância com os povos indígenas –o pai, também chamado Cildo, trabalhou no antigo Serviço de Proteção ao Índio e integrou a equipe do marechal Rondon. O artista trabalha atualmente em um livro, a ser publicado ainda este ano pela editora Ubu, sobre um massacre de indígenas kraô em 1940, investigado por seu pai.
Ao longo das décadas, “Cruzeiro do Sul” foi apresentada em grandes salas de museus de diversos países. “É uma peça que eu gosto muito. A intenção é quase desaparecer, de maneira que só sobre o espaço mesmo. Então, nesse sentido, ela funciona”, explica Meireles.
Na Orangerie do Senado, que não é um museu permanente, –não confundir com o Museu de l’Orangerie, que também fica em Paris, mas a dois quilômetros dali — a obra foi instalada no piso de pedrinhas de um amplo salão de cerca de 300 metros quadrados, ressaltada apenas por um discreto holofote.
“É a primeira vez que eu faço num espaço não museológico, vamos dizer assim, com um público que não é o habitual de museus e vernissages”, explica Meireles. “Então, aqui encarei como uma experiência. Vamos ver a visitação. O que vai acontecer? Quantos inimigos eu vou ganhar?”
O artista vê uma diferença importante entre a época em que criou “Cruzeiro do Sul” e os dias de hoje: as redes sociais. “Umberto Eco disse que elas vão fazer com que o idiota da aldeia se transforme no guru do planeta.”
Ele lamenta a atual crise política, mas conclui com esperança. “A gente fala do Congresso, mas ele espelha o que é o Brasil. Mas eu acho que a gente vai resistir. O Brasil já passou por dois impeachments em um curto período e sobreviveu. Eu acho que a gente, que tem o mínimo de consciência, tem é que fechar com a justiça e com a institucionalidade.”
A instalação “Marulho” ganhou um cenário nobre: a abadia medieval do Monte Saint-Michel, patrimônio da Unesco, mundialmente famosa pelas marés que a isolam e conectam ao continente em um ciclo eterno. “Marulho” é composta por um deque de madeira, “ondas” impressas em tiras a partir de fotografias do mar e 80 vozes gravadas repetindo a palavra “água” em trinta idiomas diferentes.
Parte do acervo do Centro Nacional de Artes Plásticas desde 2004, “Marulho” foi uma das sete obras escolhidas este ano pelo Estado francês para instalação em sete monumentos do país. No Monte Saint-Michel, foi montada no antigo refeitório dos monges, perto do topo da abadia.
Meireles acompanhou remotamente a montagem, porque a subida dos íngremes degraus da abadia é penosa. “O local é muito bonito, mas não era o mais conveniente”, diz, acrescentando que o ideal seria que “Marulho” tivesse um fundo infinito, impossível no espaço atribuído. Mas ele entende a escolha: “Do ponto de vista deles, é a maneira de se referir ao sítio histórico.” E, de fato, a instalação, diante do oceano ameaçado pelo homem, permite novas interpretações.
A obra mais recente do artista brasileiro em exposição neste momento na França é a instalação sonora “Alto”. Ela fica até novembro no centro cultural Luma, em uma torre do arquiteto Frank Gehry inaugurada em 2021 em Arles.
Na instalação, a voz inconfundível de Íris Lettieri, histórica locutora do aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, enumera através de quatro alto-falantes os centímetros de uma trena de carpinteiro, criando o que Meireles define como um “paradoxo físico e sonoro”.
“Alto” foi apresentada pela primeira vez na Fundação Beyeler, museu de arte contemporânea na Suíça. Apesar de realizada por Meireles no ano passado, sua concepção remonta a 1977, quando o artista morou no Distrito Federal, então ainda em pleno desbravamento.
O jornalista viajou ao Monte Saint-Michel a convite do Ano do Brasil na França
Cruzeiro do Sul
Quando: Até 14 de julhoOnde Orangerie do Senado, rue de Vaugirard, 19, Paris
Preço: Gratuito. bresilfrance2025.com
Marulho
Quando: Até 16 de novembro.
Onde: Abadia do Monte Saint-Michel – Normandia
: Preço 16 (R$ 100). Cnap.fr
Acessibilidade
Acessibilidade Arquitetônica
Acessibilidade Arquitetônica
Há acesso e circulação sem barreiras físicas, sanitário adequado e local reservado para cadeirantes com acompanhante
Alto
Quando: Até 25 de novembro.
Onde: Luma Arles – 35 avenue Victor Hugo, Arles
Preço: 9 (R$ 57). luma.org