LONDRES, REINO UNIDO (FOLHAPRESS) – Há poucas semanas, a liderança indígena Juma Xipaia estreou no Festival de Tribeca, em Nova York (EUA), como protagonista e uma das produtoras do longa-metragem “Yanuni”, ainda sem data de lançamento no Brasil.
Primeira cacica entre os povos do Médio Xingu, ela tem uma trajetória marcada pela luta pelos direitos dos povos originários e do meio ambiente, especialmente ao denunciar os impactos da construção da hidrelétrica de Belo Monte e o avanço do garimpo em suas terras, enfrentando diversas tentativas de assassinato.
Dirigido pelo cineasta austríaco Richard Ladkani e coproduzido por Leonardo DiCaprio, o documentário acompanha sua trajetória desde a militância em Altamira, no Pará, passando pelo trabalho na Secretaria de Articulação e Promoção de Direitos Indígenas no MPI (Ministério dos Povos Indígenas), em Brasília, e a chegada da filha Yanuni.
Em entrevista à Folha de S.Paulo logo após a exibição em Sheffield, na Inglaterra, Juma contou como conheceu o diretor em 2020 e como se deu o processo de compreender o longa-metragem como um megafone para o mundo.
“Não queria que fosse só uma história minha, mas que as pessoas se identificassem”, afirmou. “Quero que seja uma ferramenta para fortalecer o movimento.”
Sua relação com Hugo Loss, coordenador de Operações de Fiscalização do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) e pai de Yanuni, também ganha força na narrativa. “O nosso amor, assim como o nosso amor pela amazônia, vivido, não roteirizado, é algo que a lente do Richard captou, e o público sente e reage positivamente.”
Durante a conversa, compartilhou seus aprendizados no MPI e críticas ao marco temporal e à lógica dominante da bioeconomia, além de sua preocupação com a COP30 (conferência do clima que será realizada em novembro, em Belém) estar esvaziada de vozes dos povos da amazônia.
Em paralelo à divulgação do filme, Juma tem se dedicado ao fortalecimento do Instituto Juma, que promove a gestão ambiental e a valorização da medicina tradicional no seu território. Ela tem sua mãe, uma das primeiras técnicas de enfermagem do Médio Xingu, como grande inspiração, e com ela sonha e planeja fomentar uma escola de saberes tradicionais.
Como se deu o seu encontro com o diretor de “Yanuni” e como foi a sua participação na criação e produção do filme?
O primeiro encontro com o Richard foi mediado pela jornalista Eliane Brum. Ela fez os primeiros contatos e me ajudou a entender a importância do projeto.
Eu já tinha feito denúncias em documentários, mas fui exposta sem apoio à minha segurança e já vivia isolamento social antes da pandemia por conta das tentativas de assassinato. O que o Richard trouxe foi diferente. Ele falou: “Eu quero muito fazer algo para a amazônia. Eu me sinto responsável também. A gente se compromete e que quer fazer junto com você”.
A minha preocupação o tempo todo era de ter outras pessoas indígenas no filme, que não fosse só eu. Acredito que a gente conseguiu. Eu me sinto feliz.
PERGUNTA – Quais são as suas expectativas em relação ao impacto do filme?
JUMA XIPAIA – Eu queria que as pessoas se conectassem pessoalmente com o filme e que enxergassem que a gente muitas vezes não tem a opção de viver tranquilamente no território. Enquanto estou na luta, estou deixando de ver meus filhos crescerem, de cultivar essa relação entre mãe, pai, filhos, território e saberes, uma troca que estou deixando de repassar e também de receber. Algo que poderia ser bem menos sobrecarregado para mim e para outras lideranças se a sociedade se enxergasse como corresponsável na luta por justiça climática e justiça social.
A partir do olhar do publico, o filme foi ganhando outro significados. Diversas pessoas têm falado: “Eu tinha perdido a esperança da humanidade. Eu tinha perdido a esperança no amor. Eu quero um Hugo [Loss, seu marido] na minha vida. Eu quero esse amor”.
P. – Como está hoje o povo e o território Xipaia?
JX – Tem uma forte pressão por mineração, a questão de drogas e de outros impactos e ameaças. Temos uma forte interferência religiosa, que é tão grave quanto o garimpo. A violência externa também afeta o território.
No passado não muito distante, havia um sentimento de que a gente, por estar no centro do coração da amazônia, estava protegido. Isso mudou em abril de 2022, quando o meu pai se deparou com uma grande draga no nosso território. Eles tinham dinheiro e uma tecnologia que nunca tínhamos visto, e entendemos que não é tão difícil assim chegar lá.
Desde então, a gente vive em estado de alerta. Entendemos naquele momento que precisávamos fortalecer a nossa gestão territorial.
A gente tem conseguido avançar nisso, e esse é um dos compromissos do filme com o território, por meio do Instituto Juma. E todas as decisões são tomadas com a participação de todas as comunidades, lideranças e agentes ambientais.
P. – Quais foram seus principais aprendizados no MPI e no ambiente de Brasília?
JX – O sentimento que eu tinha era de que o ministério é um território de recente contato que precisamos demarcar e permanecer. Fui para o ministério porque eu acredito na ministra Sônia Guajajara. Mas a gente continua em um espaço de resistência, mesmo estando dentro do governo, porque a estrutura toda ainda é muito bolsonarista.
A experiência foi muito importante para conhecer essa realidade, entender os mecanismos e as ferramentas. Essa é uma grande oportunidade que temos de construir políticas públicas com base nas nossas vivências. Isso faz toda a diferença quando se pensa em políticas para a gestão territorial, para a proteção e desintrusão dos territórios.
P. – Estar em Brasília, dentro de um ministério, me fazia sentir altamente presa, sufocada, com dificuldade de respirar. Como chegar em uma audiência e ver aquele Zé Trovão [deputado federal pelo PL-SC], lidar com pessoas extremamente hostis, que nos odeiam?
JX – Nós temos poucas pessoas como Célia Xakriabá [deputada federal pelo PSOL-MG], nós temos poucas pessoas como Sônia, nós temos poucas pessoas como Joênia Wapichana [presidente da Funai, Fundação Nacional dos Povos Indígenas]. Nós precisamos avançar mais. Nós precisamos estar no governo.
P. – No filme, há uma cena em que a senhora está dentro de um carro, chegando em Brasília para o seu trabalho no ministério, e se pergunta se está sendo otimista demais. Acha que estava sendo mesmo muito otimista? Qual é a sua avaliação sobre a política do atual governo em relação aos direitos dos povos indígenas?
JX – A sensação que eu tinha no MPI era toda hora um incêndio diferente. Nós não tínhamos somente a amazônia pegando fogo, tínhamos o Brasil pegando fogo. Quando não era pegando fogo, era morrendo por muita água.
Nós herdamos um Brasil em colapso. Recebemos do governo anterior crianças extremamente desnutridas, meninas e mulheres violentadas, inúmeras violências. O MPI, a Funai e o Ibama tiveram que fazer uma grande força-tarefa para cuidar de uma crise humanitária [do povo yanomami].
É importante entender que, por mais que a gente tenha o presidente Lula, o Ministério dos Povos Indígenas, nesse meio político há muito interesse anti-indígena: não é só a mineração, não é só gado, não são só os latifundiários, há interesses pela especulação imobiliária, como no território dos pataxós, no sul da Bahia.
Diante de todos esses desafios, eu vejo que teve conquistas. Há avanço na saúde, na educação, no plano nacional de gestão territorial dos povos indígenas. Mas óbvio que há muito o que se avançar. O Brasil tem muitos séculos de destruição, e a gente não pode esquecer isso.
P. – O Supremo Tribunal Federal realizou recentemente a última reunião da Comissão de Conciliação, convocada por Gilmar Mendes, sobre o marco temporal para demarcação nos territórios indígenas. Como vê o momento atual desse debate?
JX – A gente nem deveria estar falando sobre o marco temporal, ele não deveria nem ser pauta de discussão, de tão absurdo que é. Porque não existe marco legal para estarmos no Brasil. Nós já estávamos aqui e aqui continuamos.
Esse absurdo traz consigo inúmeras violências que não só aconteceram, como estão acontecendo, e ainda são incentivadas e financiadas para acontecerem mais. Eu me lembro das mulheres pataxós, mais de 300 lideranças que estiveram em Brasília falando das violências em seus territórios, de assassinatos, de crianças que só queriam acesso à água…
P. – No filme, a sua relação espiritual com a ancestralidade e com a floresta aparece com frequência. Como fortalecer a medicina tradicional? E como o Instituto Juma vem trabalhando com isso?
JX – A medicina tradicional é a minha memória, é minha infância. A minha mãe foi e continua sendo a minha grande inspiração. Se hoje eu tenho esse olhar para o coletivo, é porque ela me ensinou isso.
Ela foi a primeira técnica de enfermagem do Médio Xingu. Sempre antes de dar uma injeção, um paracetamol, uma dipirona, ela fazia um chá, um banho, uns benzimentos. Ela não só cuidava da gente, ela cuidava da aldeia.
Quando eu era criança, a gente não tinha hospital, medicação para malária, atendimento de saúde, não tinha apoio da Funai. A gente tinha só o conhecimento que estava com os mais velhos.
A gente pretende repassar esses conhecimentos para as próximas gerações, para as crianças, fomentar uma escola do conhecimento da floresta. Quando abriu a aldeia Kaarimã, da qual sou cacique, a gente falava: “Vamos fazer o caminho de volta para casa? Vamos fazer o caminho de volta para as nossas origens?”.
P. – A bioeconomia ganhou muita visibilidade nos últimos anos como parte de uma agenda positiva para a amazônia. Como avalia esse conceito e as políticas públicas que vêm sendo desenvolvidas?
JX – A gente já faz comércio, troca, há muito tempo. Se quisermos mesmo uma bioeconomia, é preciso reconhecer quem já faz isso há muitos séculos, sem precisar derrubar uma floresta. Muitos se apropriaram do termo para um biocapital, que não é meu olhar.
A bioeconomia não pode ser onde o não indígena é o empreendedor e os povos só fornecem matéria-prima. Há comunidades com empreendedorismo sustentável, com miniusinas e beneficiamento dos seus produtos.
O problema é que tem inúmeros incentivos para quem é do agro, para quem quer derrubar, para quem quer colocar [árvores] frutíferas, espécies exóticas, mas poucos incentivos para o desenvolvimento local feito pelas próprias comunidades, segundo suas necessidades e sua visão de bioeconomia.
P. – Na COP26, em Glasgow, em 2021, a senhora nos perguntava: o que ainda não estamos ouvindo? O que diria que ainda não estamos ouvindo hoje?
JX – Acho que tem muita pressa, muita ansiedade no fazer, no imediatismo. E pouco tempo para sentir e para ver. Eu me sinto assim num espaço, numa grande multidão, com muita gente falando.
A COP30 será na amazônia, mas, de fato, no meio dessa multidão, estão os povos da amazônia? Continuamos nessa multidão, ouvindo muitas vozes, mas sem que as nossas sejam de fato ouvidas?
RAIO X | JUMA XIPAIA, 34
Foi a primeira mulher cacique do Médio Xingu, eleita aos 24 anos. Liderança indígena e ativista ambiental, é fundadora do Instituto Juma, criado em 2020. Foi Secretária de Articulação e Promoção de Direitos Indígenas no Ministério dos Povos Indígenas (MPI) e, em 2023, foi empossada na Academia Brasileira de Cultura (ABC), reconhecimento à sua luta pela defesa dos direitos dos povos originários e pela proteção da Amazônia.