BERLIM, ALEMANHA (FOLHAPRESS) – Indagada sobre como percebia seus livros transformados em filmes, a escritora sul-africana Deborah Levy reconheceu que sua obra é descritiva a ponto de conter equivalentes literários de closes, planos-sequências, cortes abruptos e vistas aéreas.

Diverte-se, porém, ao constatar que pouco do que imaginou como cenas ao escrever chega às adaptações cinematográficas. “O filme, com toda a razão, não conta a história da mesma forma do que o romance.”

“Hot Milk”, que chega nesta semana ao público brasileiro, é uma visão muito particular do livro de 2016, ainda não publicado no país. Levy explora “a natureza estranha e monstruosa da maternidade” em uma história “hipnótica sobre sexualidade feminina e poder”, de acordo com a sinopse da versão inglesa do livro.

Tais elementos constam da adaptação cinematográfica realizada por Rebecca Lenkiewicz, em sua estreia atrás das câmeras. “Adorei o livro e sabia que iríamos honrá-lo, mesmo que cometêssemos algumas digressões”, disse à Folha a roteirista inglesa de longas como “Ida”, vencedor do Oscar de melhor filme internacional em 2013, e “Desobediência”, de 2017. “Hot Milk” foi apresentado na 75ª edição do Festival de Berlim, em fevereiro, obtendo recepções mistas.

Lenkiewicz, também escritora como Levy, não cometeu algumas digressões, mas várias, não sem antes tentar transferir para o filme, principalmente em seu início, as narrativas puramente visuais do livro. A personagem de Emma Mackey, da série “Sex Education”, revela quase em silêncio seu complexo estado de espírito. Cachorros latindo, cobras, peixes e até águas-vivas são usados para refletir ou interferir em seus pensamentos.

Mackey faz Sofia, a filha que acompanha a mãe em busca de cura em um balneário popular da Espanha. Rose, interpretada por Fiona Shaw, tem uma condição de saúde não especificada, que a torna dependente da filha e de uma cadeira de rodas. A consulta com o médico local, no entanto, sugere que o sofrimento de Rose é tão real quanto psicológico.

Perdida como qualquer jovem de vinte e poucos anos, Sofia alterna a atitude resignada com descobertas que deveriam ser naturais em uma viagem de veraneio, como sexo e paixão. “Traduzir todos esses sentimentos foi muito complicado”, disse Mackey. “Uso roupas curtas durante a maior parte do filme. Não há onde me esconder. Está tudo à mostra.”

As duas atrizes passaram todo o período de produção convivendo como os personagens. Shaw, detalhista, pediu para ser conduzida na cadeira de rodas por Mackey inclusive na hora de ir ao banheiro nos intervalos de filmagem. “Não tive muita escolha”, disse a atriz. “Ela odiou”, confirmou a colega, mais tarde, aos risos.

“Rose é uma confusão. Foi um ótimo exercício para mim, porque muitas vezes interpreto pessoas que são o centro moral da história. Agora não. Tinha que ser apenas a mãe cruel, muito cruel, que não percebe o quanto faz mal à própria filha”, resumiu Shaw, que conduz muito bem sua Rose, produzindo momentos cômicos no filme. Com frases implacáveis, sublinha a incapacidade da filha de tirar carteira de motorista ou casar. “Ainda que qualquer coisa desse tipo pudesse significar afastamento.”

É dessa relação tóxica que Sofia foge diariamente. Na praia, acaba encontrando Ingrid, uma costureira alemã vivida por Vicky Krieps. O amor de praia é irresistível, mas vem com um peso que a história tratará de oferecer a Sofia como uma espécie de chave para a compreensão da situação da própria mãe.

Lenkiewicz reconhece que o filme não foge ao olhar predominante feminino de sua produção anterior, como roteirista. “Diria que ele vai além, é amazônico”, fazendo referência à figura de Ingrid, que se apresenta à história cavalgando na praia. Não é o único clichê do filme.

A maior digressão da diretora, no entanto, surge ao final, quando a interpretação do ocorrido é reservada aos espectadores. “Acho que as pessoas chegarão a conclusões diferentes. Talvez não haja uma única”, afirmou Lenkiewicz.

HOT MILK

– Onde Nos cinemas

– Classificação 14 anos

– Elenco Vicky Krieps , Emma Mackey , Fiona Shaw

– Produção Reino Unido, 2025

– Direção Rebecca Lenkiewicz