SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O chefe do Ministério Público de São Paulo, Paulo Sérgio de Oliveira e Castro, decidiu manter arquivados 11 inquéritos que investigavam a conduta de policiais militares durante as operações Escudo e Verão, que deixaram um saldo oficial de 84 mortos pela PM na Baixada Santista. Esses casos estavam entre os últimos em que ainda havia chance de produção de novas provas e, eventualmente, novas denúncias contra policiais.
A decisão do procurador-geral de Justiça do estado confirma o entendimento dos promotores responsáveis pelas investigações de que não havia provas suficientes contra a conduta da PM. As famílias dos mortos, representadas pela Defensoria Pública estadual nesses processos, haviam pedido os desarquivamentos.
Do total de 84 mortes, promotores ofereceram sete denúncias relacionadas às operações, que levaram 13 policiais militares à condição de réus. Não há mais nenhuma investigação de morte em andamento no Ministério Público, o que significa que todos os casos já foram denunciados ou arquivados. As ações da PM na região começaram no final de julho de 2023 e terminaram em abril do ano seguinte.
Entre os casos arquivados está, por exemplo, a morte de Emerson Rogério Telascrea, 33, alvejado com três tiros de fuzil disparados por PMs. Como mostrou a Folha de S.Paulo, a lente da câmera corporal presa ao uniforme de um sargento que participou da ação estava bloqueada, mas ainda assim captou a frase “Desculpa, senhor”, interrompida por dois disparos -Telascrea já estava ferido neste momento.
Nenhum dos vídeos anexados ao processo mostrou o suspeito armado, ou a arma que depois foi atribuída a ele. Segundo os promotores responsáveis pelo caso, não havia indícios mínimos para afirmar que os policiais militares não agiram em legítima defesa na ação.
Há outros casos emblemáticos entre as investigações encerradas, como a morte do vendedor ambulante Felipe Vieira Nunes, 30, do ajudante de pedreiro Layrton Fernandes da Cruz Vieira de Oliveira, 22, e de Leonel Andrade Santos, 36, e Jefferson Ramos Miranda, 37 –esses dois últimos, mortos na mesma ocorrência. A defesa das famílias afirma que havia elementos suficientes para mais denúncias ou que mais provas poderiam ter sido produzidas, o que o Ministério Público rejeita.
No caso de Nunes, por exemplo, não houve perícia no local da morte -consta do boletim de ocorrência que a área estava prejudicada “por forte chuva”. Duas testemunhas afirmaram que ele tinha uma lesão grave na mão direita, e que seria incapaz de segurar uma arma, contrariando o relato da PM. Não houve pesquisa pelo histórico médico de Nunes, apesar de a família ter indicado os hospitais em que ele teria tratado o ferimento.
Já as fotos da perícia de Layrton mostram marcas em seus ombros e braços indicando que alguém, com os dedos manchados de sangue, pode ter mudado a posição do corpo. As imagens também mostram objetos atribuídos a ele –um rádio-comunicador e uma sacola plástica com drogas– sem nenhum respingo de sangue, mesmo que houvesse manchas por todo o chão e nas paredes.
Leonel Andrade Santos usava muletas e era beneficiário do BPC (Benefício de Prestação Continuada) para pessoas com deficiência, Segundo a família, ele era incapaz de empunhar uma arma -o relato dos policiais aponta que ele estava armado. A Defensoria afirma que o arquivamento ocorreu sem produção de provas técnicas essenciais e sem ouvir testemunhas que presenciaram a ocorrência.
“Nesses casos havia diversas situações que indicavam que não existiu a legítima defesa alegada pelos policiais, ou ao menos que a versão dos policiais não estava comprovada pelas provas do processo”, diz a defensora pública Gabriela Pimenta, do Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos.
Em alguns casos, não foram ouvidos todos os policiais das equipes diretamente envolvidas nas ocorrências. “Alteração da cena do crime, remoção dos corpos sem vida, obstrução das câmeras corporais, isso não parece ter sido levado em consideração na hora de se acreditar ou não na palavra dos policiais acerca da legítima defesa”, completou ela.
As defensoras responsáveis pelos casos estudam a possibilidade de protocolar ações cíveis de reparação de danos e de recorrer a cortes internacionais de direitos humanos. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (órgão ligado à Organização dos Estados Americanos) já pediu, no ano passado, que o Brasil adote as medidas necessárias para proteger a família de Layrton, após o registro de ameaças e intimidações da PM.
Na investigação da morte de Edneia Fernandes Silva, 31 -mãe de seis filhos, que foi atingida por um disparo da PM-, a Promotoria concluiu que o policial não teve intenção de atingir a vítima, e o processo foi encaminhado à Justiça Militar. Dessa forma, o caso não pode ser julgado por um júri popular, mas ainda há chance dos agentes serem responsabilizados.
Edneia foi atingida no momento em que policiais perseguiam uma moto. O promotor responsável pelo caso desconsiderou o relato de uma testemunha, que afirmou que apenas policiais atiraram, e considerou que eles estavam se defendendo. O caso não está entre os 11 em que a Defensoria pedia desarquivamento.
A investigação de uma ocorrência que deixou um sobrevivente ainda está em andamento, e que outros dois inquéritos semelhantes -com suspeitos feridos- foram encerrados.
Questionado, o Ministério Público afirmou que as decisões de arquivamento foram tomadas após provas como imagens de câmeras corporais, oitiva de testemunhas e policiais e laudos periciais serem confrontadas. Além disso, lembrou que os arquivamentos foram autorizados pela Justiça.
O órgão informou que durante as investigações “realizou-se busca ativa de testemunhas, resultando na oitiva do total de 92 pessoas; 330 filmagens analisadas, somando o total de 166 horas de vídeos; 167 interrogatórios, além de inúmeras perícias”, e ressaltou que foram instaurados procedimentos investigatórios para todas as mortes nas duas operações, e que isso ocorreu de forma independente dos inquéritos da Polícia Civil.
O governo Tarcísio de Freitas (Republicanos) afirma que todos os casos com mortes das duas operações “foram rigorosamente investigadas pelas polícias Civil (Deic de Santos) e Militar, com o acompanhamento das respectivas corregedorias, do Ministério Público e do Poder Judiciário. Todo o conjunto probatório apurado no curso das investigações, incluindo as imagens das câmeras corporais, foi compartilhado com esses órgãos.”
A nota diz ainda que mais de 1.600 suspeitos foram presos durante a Escudo e a Verão. ” A atual gestão investe continuamente na capacitação do efetivo, na aquisição de equipamentos de menor potencial ofensivo e em políticas públicas voltadas para a redução da letalidade. Além disso, os cursos ao efetivo são constantemente aprimorados e comissões direcionadas à análise dos procedimentos revisam e aperfeiçoam os treinamentos, bem como as estruturas investigativas.
Denúncias apontaram manipulação de câmeras corporais
Entre os sete casos denunciados pelas promotorias, apenas um teve sentença de pronúncia, quando a Justiça considera que há o mínimo de provas para encaminhar o caso a um tribunal de júri. Nele, um sargento e um soldado são acusados de matar um homem de 49 anos que estaria deitado numa cama e colocar um colete a prova de balas e uma pistola na cena da ocorrência, forjando provas.
Noutro caso, a Justiça absolveu um capitão e um cabo denunciados pela primeira morte de um suspeito na Operação Escudo em Guarujá, em 2023. .
Outras cinco ações penais aguardam análises da Justiça que decidirão se seguem para julgamento ou não. Quatro das sete denúncias tiveram como provas imagens das câmeras corporais, sendo que os promotores apontaram tentativas de fraudar as imagens, bloqueando as lentes ou deixando de apontá-las para os corpos dos suspeitos mortos.
Uma das investigações -a da morte de Allan de Morais Santos, 36- chegou a flagrar PMs orientando colegas a bloquear as câmeras.