REINALDO JOSÉ LOPES
SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS) – Pesquisadores europeus obtiveram a primeira sequência completa das “letras” do DNA de um habitante do Egito faraônico -um homem que morreu há mais de 4.500 anos, durante o chamado Antigo Império. Os dados do genoma (conjunto do material genético) sugerem que ele tinha pele escura e contava entre seus ancestrais tanto grupos nativos do norte da África quanto pessoas oriundas da Mesopotâmia, na região do atual Iraque.
Os resultados, publicados nesta quarta-feira (2) na revista científica Nature, enfim cumprem uma antiga promessa da arqueogenômica, como é conhecido o ramo de pesquisa que busca investigar o DNA dos seres humanos do passado. Quando a área ainda estava engatinhando, nos anos 1980, um dos primeiros objetivos dos estudiosos foi justamente decifrar o material genético dos antigos egípcios.
No entanto, as mesmas condições climáticas e culturais que permitiram a preservação de muitos cadáveres daquela civilização -o calor seco e a prática da mumificação- atrapalharam bastante a preservação do DNA. Até agora, estudos com defuntos egípcios só tinham conseguido obter fragmentos relativamente pequenos de material genético.
Na nova pesquisa, coordenada por pesquisadores do Instituto Francis Crick e da Universidade John Moores de Liverpool (ambas instituições britânicas), a barreira finalmente foi vencida. A equipe estudou um indivíduo sepultado na localidade de Nuwayrat. A área fica 265 km ao sul do Cairo e é considerada parte do chamado Médio Egito (nessa classificação geográfica, usada desde a Antiguidade, o Alto Egito é a porção do reino mais próxima das nascentes do rio Nilo, enquanto o Baixo Egito, perto do Mediterrâneo, é onde o Nilo deságua).
As datações feitas a partir do próprio esqueleto do defunto indicam que ele morreu entre os anos 2855 a.C. e 2570 a.C. O corpo foi colocado dentro de uma grande urna funerária de cerâmica, a qual, por sua vez, estava armazenada numa tomba aberta na rocha.
Essas características mortuárias sugerem que se tratasse de um indivíduo relativamente rico. Mas alterações em sua anatomia -como a osteoartrite e indícios de que ele passava muito tempo sentado e trabalhando com os braços esticados- revelam que ele tinha atuado como artesão e provavelmente como oleiro, fabricando utensílios de cerâmica. Lesões no pé são compatíveis com a hipótese de que ele o usava para girar a roda de oleiro, justamente um dos mecanismos empregados para modelar vasos no Egito antigo.
A conformação de seu esqueleto indica ainda que ele morreu entre a meia-idade e o começo da velhice (de 44 anos a 64 anos, com maior probabilidade para a segunda opção) e media no máximo 1,60 m. Já os dados de DNA associados à aparência física sugerem que ele tinha cabelos e olhos castanhos e cor de pele negra ou, com menor probabilidade, uma tez morena intermediária. Há uma incerteza maior na avaliação por causa dos muitos genes envolvidos nessas características, com efeitos ainda não totalmente elucidados, e pela relativa falta de conhecimento sobre a população egípcia da época.
Já a comparação com outras populações do mundo antigo indicou que cerca de 80% do material genético do homem de Nuwayrat está associado a outros grupos do norte da África, em particular os do Neolítico (a fase da pré-história que inicia o domínio da agricultura e da criação de animais) no atual Marrocos. Os outros 20% de seu DNA parecem ter sido legados por grupos ligados ao Neolítico da Mesopotâmia. Apesar dessa ancestralidade parcialmente “estrangeira”, a composição química de seus ossos mostra que ele provavelmente cresceu no próprio Egito.
“É a primeira evidência genética em favor de potenciais movimentos de populações chegando ao Egito nessa época”, destacou em comunicado oficial um dos coordenadores do estudo, Pontus Skoglund, do Laboratório de Genômica Antiga do Instituto Francis Crick.
A ideia faz sentido quando se considera que boa parte das bases materiais da civilização egípcia, como a domesticação de cereais como o trigo e a cevada, provavelmente se deve ao plantio original desenvolvido em território asiático, em regiões como a própria Mesopotâmia.
O intercâmbio comercial entre as duas regiões durante toda a Antiguidade era bastante comum, e é possível até que os egípcios tenham tido a ideia de desenvolver seu célebre sistema de escrita, os chamados hieróglifos, ao ter contato com a escrita cuneiforme da Mesopotâmia, que é um pouco mais antiga.