PARIS, FRANÇA (FOLHAPRESS) – A argila de “Em Princípio” ainda não tinha secado quando Anna Maria Maiolino chegou ao Museu Picasso, em uma manhã quente de junho em Paris. Quem tocasse a instalação efêmera, que até 21 de setembro ocupará uma sala inteira do prédio do século 17, poderia alterá-la -e ai de quem fizesse isso. “São como meus filhos”, afirma Maiolino, que se aproximou demais de uma das obras da mostra.
O título da exposição, “Je Suis Là. Estou Aqui” -nenhuma relação com o filme quase homônimo de Walter Salles-, não poderia ser ilustrado por algo mais eloquente que essa obra efêmera e a presença física da artista, agraciada com o Leão de Ouro da Bienal de Veneza do ano passado, pelo conjunto da carreira.
Aos 83 anos, o olhar curioso é o mesmo do 3×4 da ficha consular de quando migrou da Venezuela para o Brasil, em 1960, uma das etapas de um percurso que começara na Itália natal e ainda passaria por Estados Unidos e Argentina.
“Eu pertenço a várias camadas dos países onde vivi”, diz a artista, misturando português, espanhol e italiano. “Mas meu coração é brasileiro. É carioca, carioquíssimo.”
Em 1962, dois anos depois de instalar-se no Rio de Janeiro, Maiolino, então com 20 anos, era citada pela primeira vez nas páginas desta Folha de S.Paulo. Um de seus desenhos foi selecionado para uma mostra na galeria de arte que o jornal mantinha na alameda Barão de Limeira. Entre os escolhidos também estava Rubens Gerchman, artista morto em 2008, que no ano seguinte se tornaria seu primeiro marido.
É apropriado que a primeira individual de Maiolino em Paris, parte da programação cultural do Ano do Brasil na França, ocorra no Museu Picasso. “Mesmo sendo de épocas diferentes, ele homem, eu mulher, nós tínhamos em comum uma coisa: a curiosidade”, diz, falando de si, indevidamente, no pretérito imperfeito.
“O Picasso experimentou e comeu a arte de todo mundo e defecou Picasso. Foi um grande comilão, antropófago das culturas dos outros. A grande coisa é que ele transformou tudo em Picasso. Eu e ele, com a diferença de idade e de séculos no meio, a curiosidade nos faz mudar de suporte, do desenho para a pintura, para a escultura.”
Sem pretensão de ser uma retrospectiva, a exposição evidencia isso. São mais de 170 obras, entre pinturas, esculturas, desenhos (muitos deles inéditos) e vídeos abrangendo seis décadas de carreira, distribuídas por seis salas.
“Não é uma mostra dividida cronologicamente”, afirma a curadora brasileira da exposição, Fernanda Brenner. “Não colocamos a obra dela em uma sequência, e isso ressalta o quanto a prática dela é coerente ao longo dos anos.”
A trajetória de Maiolino cruzou a de vários movimentos das artes plásticas brasileiras, sem que ela jamais pudesse ser rotulada.
Nos anos 1960, ela fez parte da nova figuração brasileira, ao lado de Gerchman, Antonio Dias e Roberto Magalhães. Em 1967, com Gerchman, Lygia Clark, Lygia Pape, Hélio Oiticica e outros, foi uma das signatárias da Declaração de Princípios Básicos da Vanguarda, manifesto que se propunha a adotar “todos os métodos de comunicação com o público, do jornal ao debate, da rua ao parque, do salão à fábrica, do panfleto ao cinema, do transistor à televisão”.
A boca antropófaga é presença constante na obra da artista. É o caso do Super-8 “In-Out (Antropofagia)”, dos anos 1970, planos fechados perturbadores de bocas sucessivamente escancaradas e tapadas. Ou da icônica foto “Por um Fio”, de 1976, da série “Fotopoemação”, em que um fio interliga pela boca três gerações dos Maiolinos: a própria Anna Maria, a mãe e a filha Verônica.
Outro destaque é uma imagem da performance “Entrevidas”, de 1981, em que a artista caminhava de olhos fechados por uma sala com 70 ovos espalhados no chão, metáfora da conjuntura política brasileira da época.
No final dos anos 1980, a artista descobriu a argila, material que domina “Novas Paisagens”, uma das salas da exposição. “Eu estava em uma crise muito grande. Estava cansada da arte contemporânea”, diz. “Então, voltei ao início, ao princípio. Entendi que a argila, que é um material muito sensual, muito plástico, carrega a possibilidade de todas as formas.”
Vem daí o nome “Em Princípio”, dado à grande instalação em argila criada especialmente para a exposição. A artista acompanhou pessoalmente a montagem, caneta laser em punho, apontando a posição desejada para cada peça.
Esticadas, puxadas, enroladas, furadas, as formas de “Em Princípio” lembram as massas típicas da terra natal da artista. “Eu venho de uma família calabresa, que fazia pão. O preparo da comida tem a mesma estrutura do da argila, o mesmo gesto da mão”, diz, amassando com os dedos um molde imaginário.
A reportagem pede a Maiolino que explique o título da exposição. “Veja, eu já tenho 65 anos de trabalho. Obviamente, você busca um discurso próprio, diferente. Mas é uma grande mentira, porque você vem de todas as culturas do passado. Ao chegar ao Rio de Janeiro, percebi a liberdade que tinha a arte brasileira.”
Ao se dar conta da própria divagação, ela para. “Eu sou assim, meu pensamento é múltiplo. Se eu não digo algo de anterior, não vou conseguir dizer o que é ‘je suis là’.” E conclui: “Eu sou uma grande ‘chiacchierone’. Como se diz em português? [Tagarela]. Porque eu tenho paixão pelo meu trabalho.”
ANNA MARIA MAIOLINO – JE SUIS LÀ. ESTOU AQUI
Quando Ter. a dom., das 9h30 às 18h. Até 21 de setembro
Onde Museu Picasso – 5 Rue de Thorigny, 75003, Paris
Preço 16
Link https://museepicassoparis.fr/