SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Eventos recordes de seca atingiram regiões desenvolvidas e vulneráveis do mundo de 2023 a 2025 e trouxeram prejuízos econômicos e sociais jamais vistos antes. É o que aponta um relatório publicado nesta quarta-feira (2) pela convenção das Nações Unidas para o combate à desertificação (UNCCD, na sigla em inglês).
A combinação da mudança climática com o El Niño, fenômeno natural de aquecimento das águas do oceano Pacífico, intensificou secas em diversas partes do planeta, segundo o documento.
“Ninguém ficou imune aos efeitos da seca massiva que vimos em todo o mundo. Tivemos um El Niño mais longo e intenso que o comum, de 2023 até 2024, que afetou a toda a população global”, diz Paula Guastello, autora principal do relatório e pesquisadora no Centro Nacional de Mitigação da Seca dos Estados Unidos, que elaborou a publicação a pedido do órgão da ONU.
O relatório partiu da análise de estudos científicos, pesquisas e notícias e foi lançado durante um evento da Aliança Internacional para a Resiliência à Seca, da qual o Brasil é signatário.
“Precisamos olhar a seca como um risco sistêmico e não um evento isolado, porque os impactos são muito mais abrangentes e longos do que pensávamos”, afirma Daniel Tsegai, especialista em secas da UNCCD.
O documento cita a amazônia como um dos locais afetados. Em 2023, a parte brasileira do bioma perdeu 3,3 milhões de hectares de água superficial em comparação com o ano anterior. De acordo com Guastello, o desmate contribuiu para tornar a seca mais forte.
“Como alguns estudos mostram, a seca mata árvores e reduz a fotossíntese na amazônia. Isso significa que muito carbono não está sendo fixado por essas plantas e está sendo lançado para a atmosfera”, afirma a pesquisadora.
A queda no nível dos rios amazônicos afetou comunidades que dependem de barcos para locomoção. Segundo o relatório, isso impulsiona o debate sobre o asfaltamento de estradas na amazônia, em especial da BR-319, entre Manaus e Porto Velho, mas há risco de impactos ambientais.
“É claro que queremos que as pessoas possam se deslocar, mas há a preocupação de que a pavimentação das rodovias levaria a mais desmatamento e emissões de gases do efeito estufa”, diz Guastello.
O documento também descreve impactos à fauna, com a morte de mais de 200 botos no lago Tefé, no Amazonas, onde a temperatura da água alcançou 39°C em setembro de 2023.
A seca impactou o canal do Panamá e trouxe prejuízos para o comércio internacional. As chuvas na região caíram pela metade de fevereiro a abril de 2023, reduzindo o nível do lago Gatún, que alimenta o canal. Em maio daquele ano, o peso da carga dos navios que passam pelo local foi limitado em até 40%, por conta da baixa profundidade das águas.
Houve a perda de US$ 100 milhões por mês de outubro de 2023 a janeiro de 2024, devido à queda de 36% no tráfego de embarcações no canal. Empresas recorreram a rotas alternativas, pelo canal de Suez, no Egito, ou via cabo da Boa Esperança, na África do Sul, o que aumentou o tempo de viagem dos navios cargueiros e encareceu frutas e vegetais importados no Reino Unido.
No México, a seca afetou 67% do território em setembro de 2023, e a maioria dos reservatórios do país ficou abaixo da metade da capacidade em junho daquele ano. O relatório afirma que práticas antes consideradas viáveis, como o acordo de compartilhamento de água com os Estados Unidos em vigor desde 1944, podem não ser mais adequadas no cenário atual de mudanças climáticas.
No continente africano, cinco anos seguidos de poucas chuvas na Etiópia, na Somália e no Quênia provocaram uma seca histórica em janeiro de 2023, a maior no Chifre da África em 70 anos. A falta de água atingiu as usinas hidrelétricas instaladas no rio Zambeze, fazendo com que Zimbábue e Zâmbia aumentassem o uso de carvão em 2024 para driblar a falta de energia.
“É preocupante, porque as empresas mineradoras são de países estrangeiros, o que pode aumentar o risco de práticas exploratórias além do uso do próprio carvão, que polui ainda mais a atmosfera e contribui para o aquecimento global que intensifica as secas”, diz Guastello.
No Marrocos, as chuvas de setembro de 2023 e fevereiro de 2024 foram 70% abaixo da média. De 2021 a 2023, o governo marroquino investiu cerca de 15 milhões na semeadura de nuvens, uma técnica artificial para induzir a precipitação. A medida se mostrou eficaz para aumentar as chuvas anuais em mais de 10% em algumas regiões, mas há receios de impactos à fauna aquática, segundo o relatório.
A Espanha passou por dois anos de secas e recordes de ondas de calor, resultando em uma queda de 50% da safra de azeitonas. O preço do azeite dobrou no país em setembro de 2023, e os registros de roubo do produto cresceram em 29% de 2022 a 2023. Em Valência, a colheita de uvas para produção de vinho em 2024 foi a menor já registrada nos últimos 30 anos.
RECOMENDAÇÕES PARA COMBATER AS SECAS
O relatório da ONU lista algumas medidas para aumentar a resiliência dos países diante das secas. Investir em alertas antecipados, promover um gerenciamento sustentável da água e engajar as comunidades locais são alguns dos conselhos.
Segundo o documento, é urgente reduzir a demanda hídrica da agricultura, o setor que mais consome o recurso a nível mundial: governos e agricultores devem ser encorajados a identificar plantas que precisam de muita água e promover alternativas eficientes.
“A resposta e a preparação às secas devem ser mais inclusivas e baseadas nos ecossistemas, para proteger a população da amazônia em períodos de seca. É importante treinar as comunidades rurais para conservar água, diversificar os cultivos e gerenciar o risco”, afirma Tsegai.
Paula Guastello, autora principal do trabalho, diz lamentar a mudança na postura do governo Trump com relação a políticas climáticas, mas mostra otimismo.
“Tenho esperança de que as pesquisas sobre quanto dinheiro poderia ser economizado investindo contra a seca possam alcançar os tomadores de decisão e de que a opinião pública mudará novamente nos Estados Unidos. Essa é a minha visão, não a dos meus empregadores”, diz a pesquisadora.