SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Hollywood pode até ser a meca do cinema, mas boa parte das cenas que vemos hoje nas telas não nasceram nos estúdios que compõem a paisagem de Los Angeles. Grandes blockbusters, como “Jurassic World: Recomeço”, que estreia nesta quinta-feira, e também produções menores, como “Queer”, têm deixado a cidade rumo a destinos que oferecem melhores condições de filmagem -Reino Unido e Itália, nesses casos.

Seja pela facilidade de encontrar cenários mais apropriados para as histórias, pela mão de obra mais barata ou por incentivos fiscais atraentes, fato é que Hollywood vive hoje um êxodo. O movimento virou piada na recém-lançada temporada de “Hacks” e não passou despercebido por Donald Trump.

Numa tentativa de controlar a saída de sets de filmagens dos Estados Unidos, o republicano deu sinal verde, no mês retrasado, para que o governo avalie tarifas sobre filmes rodados no exterior, que poderiam chegar a 100%. A medida afetaria tanto produções americanas, bancadas por estúdios do país, quanto internacionais.

Detalhes e prazos não foram divulgados, e pode ser que a taxação nunca aconteça, a julgar pelo comportamento errático do presidente. Mas muitos viram a medida como uma espécie de punição de Trump a uma classe que se posicionou amplamente contra a sua reeleição -mais ou menos como aconteceu no Brasil de Jair Bolsonaro, que perdeu seu Ministério da Cultura e viu uma caça às bruxas em editais voltados à cultura.

Coibir a saída de filmes e séries dos Estados Unidos por meio de taxação, porém, não é uma medida vista com bons olhos pela comunidade hollywoodiana -Wes Anderson e Spike Lee estão entre os cineastas que a criticaram no último Festival de Cannes. Afinal, muitas produções deixaram o país a fim de aliviar seus orçamentos, num momento de acúmulo de dívidas nos grandes estúdios.

É uma medida que entra em conflito com o que a pesquisadora americana Paula Landry chama de “natureza colaborativa do audiovisual”. Autora do livro “The Business of Film”, em que esmiúça o passo a passo do cinema enquanto negócio, ela frisa a importância da pluralidade de um set de filmagem, habitado por trabalhadores de diferentes lugares e setores.

“Além do lado criativo, às vezes você precisa de cinco produtoras de cinco países para acessar determinados programas de incentivo e chegar ao orçamento que um filme demanda. Não se pode fatiar um filme para determinar se ele é mais de um país ou de outro. Isso torna o debate sobre tarifas quase absurdo. Do ponto de vista financeiro, então, quase impossível.”

Além de a indústria audiovisual americana estar mais consciente em relação a seus gastos, a pandemia também teve papel nesta fuga. Para Lee Thomas, diretora do Georgia Film Office, as quarentenas de cinco anos atrás forçaram muitos trabalhadores a deixar Los Angeles. E enquanto a Califórnia foi mais rigorosa na reabertura de seus sets de filmagem, outros estados saíram na frente -ampliando os horizontes dos estúdios.

“Muitos dos talentos não querem voltar à cidade”, diz ela, que comanda o órgão de cinema da Geórgia, que há uma década ultrapassou a Califórnia como o estado americano onde mais se grava filmes e séries. Desde o fim da pandemia, foram cerca de US$ 2,5 bilhões de investimento por parte do governo nesta indústria.

Entre as medidas, adotadas pela Geórgia e por outros estados americanos, estão créditos fiscais e reembolso de gastos para as produções, atração de empresas em busca de um lar para seus estúdios, parcerias com universidades e escolas técnicas para formar mão de obra especializada, desburocratização da emissão de permissões de filmagem e até pagamento de um valor para que filmes e séries exibam o selo “feito na Geórgia” nos créditos.

Junte a isso fatores que pesam nas escolhas de um produtor, mas que fogem de seu controle, como a queda nas vendas de ingressos de cinema e a aproximação de muitos estúdios com o Vale do Silício, dono de plataformas como Amazon Prime Video e Apple TV+ -e a seis horas de distância de Los Angeles, de carro.

Já a Netflix, que concentra seus negócios no audiovisual, mas não nasceu à sombra do letreiro de Hollywood, vai construir um complexo de US$ 1 bilhão em Nova Jersey e, na semana passada, anunciou que vai transformar um estúdio temporário em Surrey, no Reino Unido, em permanente.

Outros estados americanos como Louisiana, Texas e Novo México têm aprovado incentivos fiscais agressivos. Nova York, outro que vem perdendo espaço pelos altos custos locais e cenário icônico de séries como “And Just Like That” e “Only Murders in the Building”, aumentou seus subsídios para US$ 800 milhões no ano passado.

“Hollywood é hoje uma ideia romantizada, infelizmente. Tudo muda, e estamos vendo Hollywood deixar de ser nosso grande polo produtor para ser lembrado apenas como o berço do nosso cinema”, afirma Landry.

Em resposta a isso, a Califórnia contra-atacou na última sexta-feira, quando seu governador, Gavin Newson, há muito tempo pressionado pela situação, anunciou que vai elevar os incentivos fiscais destinados a filmes e séries de US$ 330 milhões para US$ 750 milhões anuais.

A medida visa não apenas fincar as produções em solo californiano, mas nos Estados Unidos. Queridinho de público e crítica, “Wicked” é uma produção intrinsecamente americana -seja pelos laços com o livro de L. Frank Baum, com o filme “O Mágico de Oz” ou com o musical que é hit na Broadway-, mas preferiu empregar centenas de britânicos e gravar suas duas partes nos arredores de Londres.

Projetos de escala menor, como comerciais e reality shows, também engrossam o fluxo migratório para além da fronteira. Segundo o The New York Times, o game show The Floor deixou Los Angeles rumo a Dublin, na Irlanda, porque os tributos pagos na Califórnia superavam os custos de enviar seu apresentador e os competidores para o outro lado do Atlântico.

Mas nestes aviões não estão operadores de câmera ou técnicos de som. A mão de obra utilizada é local, o que tem deixado muitos trabalhadores de Los Angeles sem contratos por longos períodos. “É uma extinção em massa”, disse Beau Flynn ao jornal. Ele é produtor de “Terremoto: A Falha de San Andreas”, filme catástrofe que tem a Califórnia como cenário, embora tenha sido gravado na Austrália.

Segundo o FilmLA, departamento de fomento e regulação do audiovisual de Los Angeles, as gravações na cidade caíram em cerca de um terço na última década, puxada principalmente pela troca de ambientação de reality shows.

Cerca de 18 mil postos de trabalho do audiovisual desapareceram no país nos últimos três anos, diz ainda o sindicato que representa trabalhadores que exercem funções técnicas nos sets de filmagem.

Entre os países que recebem cada vez mais produções americanas estão Canadá -lar de “The Last of Us” que é boa opção pela proximidade com as sedes dos estúdios-, Reino Unido, Hungria, Austrália e Romênia, onde foram gravados “Barbie”, “Duna”, “Thor: Amor e Trovão” e “Wandinha”, respectivamente.

Muitos deles permitem que as produções incluam residuais -pagamentos adicionais por reprises ou distribuição além das salas de cinema- e o salário de atores, diretores e produtores -aqueles que recebem a maior fatia da folha de pagamento- nos orçamentos elegíveis para créditos fiscais, diferentemente do padrão americano.

Outro custo altíssimo nos Estados Unidos são os planos médicos dos profissionais. Num país sem sistema público de saúde, como é o caso, o valor para empregar um funcionário pode ser sete vezes maior do que na Hungria.

Para complicar o cenário americano, a greve de atores e roteiristas do ano retrasado fez com que muitos estúdios se planejassem e criassem infraestrutura para gravar no exterior.

Assim, são vários os fatores que vêm definindo os polos cinematográficos do amanhã, mas nenhum é tão importante quanto a tecnologia, acredita Paula Landry, a pesquisadora. Numa indústria que assimila a inteligência artificial em cada vez mais etapas da produção, os caminhos para o futuro serão provavelmente abertos por robôs, aumentando o clima de distopia nesta nova Hollywood.