SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Um entregador brasiliense ficou impedido de trabalhar por nove meses por causa de um erro no reconhecimento facial obrigatório do aplicativo de entregas iFood. Ele só conseguiu reaver o acesso por meio de intervenção judicial.
Segundo os autos do processo obtidos pela reportagem, o trabalhador, que pediu para ter a identidade preservada por receio de represálias, foi bloqueado em 30 de abril de 2024, recorreu dentro do aplicativo no mesmo dia e recebeu uma negativa em 6 de maio daquele ano, após revisão automatizada da plataforma.
Por determinação da Justiça do Trabalho do Distrito Federal, ele retornou ao trabalho em fevereiro, mas ainda foi suspenso mais uma vez por falha da tecnologia.
À luz da LGPD (lei geral de proteção de dados), que define os direitos dos titulares dos dados pessoais e obrigações das empresas, o motofretista precisa aceitar o ciclo de decisões automatizadas adotado pela companhia para a qual trabalha.
Isso porque a legislação permite a cobrança de dados biométricos, mesmo sem consentimento, sob a hipótese de prevenir fraudes e garantir segurança. Além disso, a regra brasileira não prevê o direito à revisão humana, por causa de um veto do ex-presidente Michel Temer (MDB).
Além da reintegração à plataforma, o Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região decidiu, no fim de maio, que o app de entrega deveria indenizar o colaborador, que é negro, em R$ 60 mil por dano moral, ao considerar que o histórico de erros da tecnologia contra quem não é branco pesou na falha.
A decisão proferida não é definitiva, e o iFood diz que irá recorrer “para poder esclarecer os fatos alegados na ação”. Segundo a empresa, a verificação da identidade com reconhecimento facial é necessária para a segurança dos entregadores e dos serviços.
EMPRESAS PODEM EXIGIR USO DA TECNOLOGIA
O caso serve de exemplo de uma discussão emergente na Justiça trabalhista brasileira: a cobrança de reconhecimento facial de colaboradores e funcionários.
Empresas dizem que usam verificação biométrica para garantir que não há ninguém se apresentando ao trabalho no lugar do trabalhador. Por outro, os funcionários contestam falhas na tecnologia que podem levar a imprecisões no registro de horários e, no caso dos trabalhadores de aplicativo, à suspensão da relação de prestação de serviço sob suspeita de fraude.
Ainda assim, as pessoas precisam conceder a sua biometria facial caso queiram se registrar em uma plataforma de trabalho ou se o patrão exigir verificação facial no ponto de trabalho, diz o advogado Rony Vainzof, sócio do escritório VLK Advogados.
De acordo com o professor de especialização da Data Privacy Brasil Eugênio Corassa, as ações atuais versam sobretudo sobre erros da tecnologia que levaram a consequências graves, como o desligamento indevido.
ENTREGADORES E MOTORISTAS DE APLICATIVOS BUSCAM DIREITOS
No caso dos trabalhadores por aplicativo, há muitas dificuldades de provar que foram eles que passaram pela verificação nos episódios de erro, afirma Luara Dias, advogada do entregador que ganhou ação trabalhista do Distrito Federal.
“O meu cliente conseguiu a foto que foi analisada pela plataforma -bastava olhar para ver que é a mesma pessoa-, mas ele fez o recurso e o pedido não foi para frente”, diz Luara que defende a Amae-DF (Associação dos Motofretistas Autônomos e Entregadores do Distrito Federal).
De acordo com a advogada, é necessário levar os casos à Justiça trabalhista para fazer com que a empresa prove que não houve erro, mesmo sem pleitear o reconhecimento do vínculo trabalhista. “Em alguns casos, quem tem condições de fazer a prova é a plataforma, que pode, por exemplo, trazer todo o histórico de corridas feitas por um entregador.”
Luara diz que metade dos cerca de 40 casos em que ela trabalha na defesa de trabalhadores de aplicativo está relacionada à suspensão por supostas falhas da plataforma. A Fenasmapp (Federação Nacional dos Sindicatos dos Motoristas de Aplicativos) afirma que motoristas de Uber e 99 passam pela mesma questão.
A Amobitec (associação patronal que representa iFood, Uber, Zé Delivery e 99, entre outras de mobilidade e tecnologia) diz que suas associadas contam com procedimentos para abertura de pedido de revisão da decisão automatizada, como exige a LGPD.
As entidades que representam os trabalhadores por aplicativo, por outro lado, dizem que a análise dos recursos também é automatizada e pedem que as empresas permitam a análise de recursos com participação humana.
Em outro caso que gerou disputa, uma funcionária celetista, que pediu para ter a identidade omitida, disse à Justiça baiana que, quando estava grávida, teve problemas para registrar o seu horário por meio de reconhecimento facial em diversas ocasiões.
“A documentação demonstra que o software apresentou falhas estruturais que impossibilitaram seu adequado funcionamento, mesmo após quase 24 meses de tentativas de implementação”, argumenta a defesa dela para tentar reverter a demissão e pedir um recálculo da indenização. O caso ainda não teve decisão.
ASSOCIAÇÃO DE RH DÁ DICAS PARA EVITAR CONFLITOS
De acordo com a diretora financeira da ABRH (Associação Brasileira de Recursos Humanos), Maria Inês Restier, reclamações sobre o ponto com reconhecimento facial “bastante esporádicas e muito particulares”.
Pelo lado da empresa, diz Maria Inês, o sistema oferece um mecanismo antifraude eficaz. Pelo lado do funcionário, a tecnologia é prática e ágil, acrescenta. “O colaborador só precisa mostrar o rosto, não tem necessidade de cartão, de senha digital, nada disso.”
Ainda assim, segundo a especialista, o empregador que implementa o reconhecimento facial deve tomar cuidados e considerar: possíveis mudanças na aparência dos funcionários, questões de luminosidade se o ponto estiver em local externo, além de vieses conhecidos da inteligência artificial em relação a tom de pele.
“A empresa, antes de adotar a tecnologia, precisa divulgar as informações de como o ponto vai funcionar, quais os dados necessários –porque serão usados os dados que já estão no departamento de pessoal”, afirmou. Ela também recomenda que a empresa verifique a procedência do fornecedor para garantir a prestação de um serviço confiável e seguro.