SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Na maior parte da peça “Dzi Croquettes Sem Censura”, Ciro Barcelos não é ele mesmo. Salvo nos momentos em que o ator conversa com a plateia, quem está presente é o Cirinho dos anos 1970, mal adulto ainda, interpretado pelo jovem Daniel Suleiman.

Barcelos, de 71 anos, por sua vez, faz seu mestre e antigo amante, o dançarino Lennie Dale, sucesso da época, quem soltou os quadris de Elis Regina. Um elenco robusto traz de volta ainda cada um dos 13 Dzi originais. Hoje, só quatro estão vivos.

A peça surgiu quando Cláudio Tovar, outro ex-Dzi, recontou a história do grupo em seu livro “As Internacionais”. Barcelos decidiu imitar o gesto no palco, seu lugar por excelência.

A plateia assiste hoje a um espetáculo ao estilo consagrado dos Dzi Croquettes. Uma mistura de cantoria, dança e monólogos farsescos que expõem a vida e as ideias dos artistas, tudo costurado por referências populares nacionais e estrangeiras, como o teatro de revista, o cabaret e os musicais americanos.

Os Dzi surgiram em plena ditadura militar, no Rio de Janeiro. Sob a liderança de Wagner Ribeiro, uniam androginia inspirada em partes nos blocos de piranha dos carnavais, onde homens desfilavam pelas ruas vestidos de mulher, a um humor escrachado e, a partir da intervenção de Lennie, um rigor técnico no canto e na dança.

“O grande lance do Dzi sempre foi esse. Essa anarquia toda, mas todo mundo dançava e cantava”, afirma Barcelos.

Ele começou a atuar na infância. Quando sua família deixou Porto Alegre e foi morar no Rio de Janeiro, Barcelos entrou para o elenco mirim da TV Globo e participou de novelas como “A Ponte dos Suspiros” e “Rosa Rebelde”. Na juventude, seus pais decidiram voltar ao Rio Grande do Sul.

Na época, o musical “Hair” fazia sessões no Rio de Janeiro. “Eu já era exibidinho, ia para as festas e fiquei superamigo da Soninha, que era só uma atriz hippie, não a Sonia Braga de hoje”, diz.

Quando sua amiga lhe contou que Guga Ferraz deixaria o elenco do musical e seria substituído, Barcelos decidiu escapar de casa para participar das audições. “‘Hair’ era demais para os meus pais. Sexo, droga, rock and roll, todo mundo pelado no palco.”

Passou no teste, pressionou seus pais pela emancipação e zarpou para a capital paulista. Após uma de suas apresentações na cidade, encontrou o dançarino Lennie Dale, seu ídolo, esperando na saída do espetáculo. “Ali a gente já começou a namorar, e eu voltei para o Rio de Janeiro com ele.”

Foi nessa época, de volta ao Rio, que conheceu os Dzi Croquettes. Encantado, os apresentou a seu mestre, que decidiu ensinar o grupo rebelde a cantar e dançar.

Além do Brasil, o Dzi foi sucesso também na França, para onde fugiu da ditadura, apadrinhado pela atriz e cantora Liza Minelli e por Mick Jagger. No navio que os levou, Barcelos diz terem ensaiado de cá a lá. Inicialmente restritos ao andar menos luxuoso, logo a trupe passou a ser requisitada nas festas chiques e nas acomodações dos trabalhadores.

Em Paris não foi diferente. Se tornaram presença indispensável nos eventos da cena cultural parisiense, dos teatros importantes às festas. “E essa galera toda queria fazer sexo com a gente, aconteciam surubas”, Barcelos adiciona.

Sem muito dinheiro, os Dzi precisavam improvisar suas roupas e figurinos. Os franceses achavam exóticos —”très exotique”— seus brincos de pena e casacos remendados com peles de coelho.

“Depois de jantar, a gente abria os lixos de Paris e pegava tecidos incríveis, levava para casa e fazia umas coisas doidas”, diz Barcelos. “Os grandes estilistas, Saint Laurent, Valentino, eles mandavam malas de vestidos para a gente. Pegávamos aquilo tudo e rasgávamos. Eles achavam genial.”

Para o ator, o jeito menos polido de fazer teatro é uma das principais heranças dos Dzi. “Num tempo das superproduções americanas onde tudo é muito limpo, a gente traz essa carnavalidade antropofágica. Estou toda hora lembrando os meninos: gente, suja, suja! Eu não quero essa formalidade de como deve ser o comportamento cênico.”

Ele vê a antropofagia tropicalista como um pilar dos Dzi. “Nós, brasileiros, engolimos o que o estrangeiro empurra goela abaixo, digerimos e cagamos Carnaval”, Barcelos ouviu do carnavalesco Joãozinho Trinta. O ator acredita ser isso o que a arte brasileira tem de melhor a oferecer.

Tentativas de defender a memória do grupo contra o esquecimento de novas gerações acontecem desde que ele começou a se desfazer, depois da volta ao Brasil em 1976. O último grande movimento neste sentido começou em 2009 com um documentário de Tatiana Issa e Raphael Alvarez, e seguiu com uma série de espetáculos dirigidos por Barcelos que recuperam o estilo dos antigos espetáculos, exibidos entre 2012 e 2018.

Desde então, ele tem oferecido workshops a uma nova geração de artistas. Numa dessas aulas, conheceu Tiago de Melo Xavier, dono da TMX Produções e a pessoa que decidiu tirar “Sem Censura” do papel.

Barcelos e Xavier afirmam ter buscado o investimento de empresas para erguer o espetáculo, mas não conseguiram. “Estou fazendo tudo com meu dinheiro, ninguém quis patrocinar”, diz o produtor. “A gente tentou colocar num Proac, numa Lei Rouanet, mas demoraria muito.”

Até o momento, os Dzi Croquettes não entraram para o imaginário popular como seus contemporâneos Ney Matogrosso, com quem tiveram tantos pontos de encontro, Caetano Veloso, Gal Costa e tantos outros músicos com quem mantiveram relações, tampouco como o Teatro Oficina, outro grupo que provocou a ditadura e o pudor dos públicos.

Barcelos pondera que a música circula com mais facilidade, ainda mais naqueles anos dos grandes festivais musicais, e sempre contou com o apoio das gravadoras, a quem interessa preservar a memória dos artistas. O Oficina, por sua vez, segue de pé, expandindo sua história e a preservando.

“Nosso herói, Zé Celso, estabeleceu uma sede e permaneceu aqui. O Wagner, que era o nosso Zé, faleceu. O Lennie faleceu. Vários faleceram, só ficamos quatro vivos. A gente não teve essa continuidade.”

Mas o diretor diz haver também, por trás deste apagamento, certa falta de memória brasileira. “Fiquei oito anos em Paris depois do exílio. Você conversa com qualquer menininho que está estudando dança e ele sabe quem foi a bailarina russa lá de 1930. Aqui, nós temos uma desconexão, um elo perdido.”

Parece haver uma contradição entre o espírito de Barcelos e o tempo em que ele vive. Num momento da entrevista, ele diz que o sonho não morreu. Logo depois, comentando a paixão de sua geração pelo teatro de vanguarda, afirma o contrário, que as esperanças estão sepultadas.

Sua vontade de manter um grupo de teatro perene, dedicado a um mesmo projeto, ainda existe, mas ele vê essa como uma possibilidade cada vez mais distante. Ele diz achar a nova geração de atores, que sobe com ele agora ao palco, muito talentosa, mas muito mais interessada no musical americano.

“É um ator que entra em cena com uma roupa que alguém coloca nele, bate o ponto antes de entrar, é um funcionário. Pode ser que eu me engane, mas acho que esse bichinho do teatro não pegou eles. Já não interessa mais ao jovem a transgressão.”

Outra potência, na opinião do ex-integrante, é a androginia. “O Dzi se posiciona no caminho do meio. Antes de binário, não binário, trans, tem esse ser que é integral. É mais atrás, mais profundo do que se identificar como mulher ou homem. É o encontro na essência.”

DZI CROQUETTES: SEM CENSURA

– Quando Sáb. e dom., às 20h30. Até 27 de julho. Sem sessão neste dom. (29)

– Onde Teatro Itália – av. Ipiranga, 344, São Paulo

– Preço R$ 160

– Classificação 16 anos

– Elenco Ciro Barcelos, André Habacuque, Bruno Saldanha

– Direção Ciro Barcelos

– Link: https://bileto.sympla.com.br/event/106032/d/317379/s/2165218