SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A conduta do advogado Luiz Eduardo Kuntz, defensor de um dos réus da trama golpista, gera controvérsia sobre se pode ou não ser enquadrada como crime ou infração ética após ele divulgar conversas que teria mantido com o delator Mauro Cid.
O ministro Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal), determinou no último dia 18 a abertura de uma investigação contra Kuntz e o cliente dele Marcelo Câmara para apurar eventual obstrução de Justiça. Câmara foi preso preventivamente.
Especialistas ouvidos pela reportagem se dividem. O principal ponto em debate é se houve violação das regras da advocacia ou se foram utilizadas de forma regular as prerrogativas da defesa.
O criminalista Alberto Zacharias Toron, que assumiu a defesa de Kuntz, negou qualquer infração ética e disse não haver elementos para configuração de obstrução de Justiça. Afirmou que Kuntz é um advogado sério, que confia no discernimento do procurador-geral da República e que os fatos serão esclarecidos no curso da investigação.
Há duas semanas, Kuntz enviou ao Supremo o conteúdo de conversas que diz ter tido com o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro após o militar fechar acordo de delação premiada. No diálogo, Cid supostamente dá detalhes dos depoimentos à Polícia Federal e faz desabafos.
Na petição, o advogado afirma que foi procurado pelo tenente-coronel, não o contrário, e que manteve o contato por entender que poderia se tratar de uma possível contratação de serviços.
Mauricio Stegemann Dieter, professor da Faculdade de Direito da USP, diz que a conduta do advogado pode, em tese, ser considerada uma infração disciplinar por quebra do sigilo profissional.
Segundo ele, o dever de sigilo pode se estabelecer até mesmo antes do contrato, a partir do momento em que se procura um profissional para receber aconselhamento jurídico, fornecendo ao advogado informações que podem vir a ser usadas contra ele em algum caso.
“Em abstrato, podemos estar diante de diferentes infrações ao Código de Ética e Disciplina da OAB”, afirma Dieter.
“Será preciso, entretanto, que o poder público ou algum dos prejudicados pela divulgação do conteúdo dessas conversas busque o Tribunal de Ética da Ordem dos Advogados para que instaure o devido procedimento instrutório, assegurados sempre contraditório e ampla defesa aos eventualmente representados.”
A advogada Maíra Salomi, vice-presidente da comissão de direito penal do IASP (Instituto dos Advogados de São Paulo), diz que, a depender do contexto em que as mensagens foram trocadas, elas podem ir além de uma conversa entre amigos e configurar uma infração ética.
“É necessário avaliarmos o contexto de todas essas mensagens para entender se, de fato, ele estava tentando eventualmente cooptar esse cliente do outro advogado ou mesmo se isso desbordava uma conversa natural, porque, se ela entrou no âmbito do processo, ele precisava ter falado direto com o defensor [de Cid]”, afirma ela.
Quanto à suspeita de obstrução de Justiça, Salomi afirma que a tentativa de um advogado de interferir no conteúdo de uma delação pode, em tese, configurar o crime, mas só a investigação vai demonstrar se houve, de fato, embaraço às apurações.
Ela diz ser permitido, na estratégia de defesa, buscar informações de elementos dos autos, seja de dentro ou fora deles, até se valendo de técnicas de investigação defensiva, mas que é preciso observar os limites de sigilo de um acordo de colaboração premiada.
“Não me parece estar dentro dos limites da investigação defensiva obter dados confidenciais de uma colaboração. Na minha visão, isso ultrapassa os limites da investigação defensiva.”
Toron, que defende Kuntz, afirma que não havia relação profissional entre os dois e que tudo se tratou apenas de “uma conversa normal entre pessoas”.
Ele afirma que a obstrução de Justiça só se configuraria se houvesse, por exemplo, ameaça ou coação que comprometesse a liberdade de Cid perante as autoridades. Segundo ele, a interpretação tem que ser restritiva, senão qualquer ato, no limite, pode ser considerado obstrução.
A professora Helena Lobo, da Faculdade de Direito da USP, tem uma posição teórica sobre a matéria. Para ela, o crime de obstrução se choca com garantias do exercício de direito de defesa e não deveria existir no ordenamento jurídico pelos problemas e dificuldades que traz.
“Não posso chegar numa solução de uma questão criminal, seja no sentido de absolvição ou condenação, se não tiver um direito de defesa amplo, que possa ser exercido de forma destemida”, afirma ela. “O advogado, defensor, que age com medo, com medo de ser pessoalmente atingido, não consegue performar adequadamente para aquilo que interessa à Justiça”.
Na avaliação de Helena Lobo, o crime de obstrução de Justiça deve ser interpretado de forma “pontual e mais fechada” quando envolve o exercício da defesa e, com as informações disponíveis atualmente, não há indícios claros de ter sido cometido no caso de Kuntz.