SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – É difícil para Anna Bella Geiger definir a origem de suas obras sem analisar o contexto social em que foram produzidas. “Eu passei por várias fases, como uma pessoa que trabalha há 75 anos”, afirma, se divertindo.

Ao falar sobre “Fronteiriços”, porém, série em que formas de mapas são embaralhadas e remontadas dentro de gavetas de metal, ela se deixa levar pelas emoções mais cruas. A artista lembra da infância no bairro carioca do Catete dos anos 1930, onde nasceu, depois de seus pais emigrarem da Polônia.

Ali, ela observava o pai recortar latas de aveia para as transformar em forminhas, que serviriam para cozinhar pão kosher, isto é, que segue as regras da alimentação judaica, para a mulher.

A mania de segmentar para recriar, diz, vem daí. Percursora da abstração informal no país, a experimentação cartográfica se tornou uma obsessão de Geiger que, aos 92 anos, continua a produzir arte com as próprias mãos, em processos artesanais que envolvem o derretimento de chumbo e a prensa do metal. Esses trabalhos que repensam a espacialidade do mapa-múndi conduzem a exposição “Limiar”, que reúne a obra da artista no Museu Judaico de São Paulo.

É a primeira vez que Geiger faz uma mostra individual em uma instituição judaica —fato que não tem a intenção de dar qualquer recado, segundo ela. “Não é questão de apostar. Queremos que isso acabe”, diz, quando perguntada sobre o que pensa dos rumos da guerra entre Israel e o Hamas.

Seus mapas imaginários, desenhados nos mais diferentes materiais —a exemplo do papel vegetal, do chumbo e da cera—, alguns enrolados em pergaminhos como se pertencessem a épocas e civilizações distantes, surgiram de materiais da Universidade Sorbonne, em Paris, onde seu marido, o geógrafo Pedro Pinchas Geiger, trabalhava nos anos 1990.

Geiger queria perguntar o que estava por trás das soluções gráficas adotadas no mapa-múndi, que, em sua obra, mudam de função. Seus mapas não serviriam para guiar um viajante, mas o dissuadir de suas próprias certezas sobre o que é periferia e centro, norte e sul, fato e ficção.

De forma poética, suas cartografias distorcidas questionam os pilares do pensamento ocidental e brincam com símbolos da história da arte, como estátuas gregas. Outra obra, uma colagem em preto e branco, traz escrito que “a imaginação é um ato de liberdade”.

Ainda que fosse reconhecida pelas pinceladas sinuosas numa época em que a abstração era dominada pelos concretistas, Geiger decidiu mudar a rota que vinha seguindo nos anos 1960.

“Achei que eu ia começar a me copiar”, afirma a artista. Então, acabou se tornando um expoente da arte conceitual e da videoarte, com obras nas coleções do Museu de Arte Moderna, o MoMA, em Nova York, e da Tate Modern, em Londres, além de ter participado da 39ª edição da Bienal de Veneza, na Itália, em 1980.

O interesse por territórios, porém, já datava da década de 1970, quando gravou “Circumambulatio”, em que aparece com outras pessoas deitando, correndo e fazendo círculos ao ar livre sobre a areia. Dessa época, está na exposição também o desenho chamado “Carne na Tábua”, que mostra um pedaço sanguinolento de um corpo, cortado como presunto. “A ditadura mexeu comigo nos termos da morte, do sacrifício e também do sangue”, afirma Geiger, ao descrever a série que chamou de “Viscerais”.

É da revolta contra o regime que nasceu uma de suas obras mais famosas, intitulada “Brasil Nativo, Brasil Alienígena”. Para ela, a artista comprou cartões-postais vendidos à época, que mostravam indígenas de forma idílica, ainda que os militares promovessem o deslocamento forçado e violento dessa população. Ela reencenou, então, todas aquelas fotos —usar um arco e flecha ou mirar um espelho— para apontar como, na floresta ou na cidade, qualquer pessoa brasileira estava submetida à repressão e condenada ao silêncio.

Na época, uma aluna —Geiger já lecionava em cursos universitários de artes visuais— perguntou por que o feminismo não havia avançado tanto nas artes quanto nos Estados Unidos. “Nós não temos tempo de pensar isso separadamente, porque uma coisa pior se levanta”, ela respondeu.

“A arte sempre tem uma função. Na Idade Média, por exemplo, exaltava a igreja. Ela sempre é uma atitude política, mas precisa ser trabalhada pelo artista de forma não panfletária”, afirma.

O interesse em dissecar fronteiras e territórios é uma característica que Geiger compartilha com outras artistas do mesmo período, como Claudia Andujar, Maureen Bisilliat, Mira Schendel e Hannah Brandt —não por acaso, também pessoas imigrantes.

As gravuras políticas e coloridas de Brandt, aliás, também estão expostas no Museu Judaico numa mostra paralela à de Geiger. A artista retratou o cotidiano de trabalhadores na capital, como é o caso de “Menino com Burrico”, que mostra um jovem solitário engraxando sapatos, para depois se dedicar a recriar paisagens brasileiras coloridas.

Cada uma exigia diferentes moldes de madeira entalhada para cada elemento —como pescadores, rede e peixes. Representar o que via era uma forma de reconhecer o lugar onde ela iria pertencer dali em diante, afirma a curadora, Ruth Tarasantchi.

Brandt veio para o país em 1935, partindo da Holanda depois de escapar da Alemanha nazista, e se naturalizou brasileira no Brás, em São Paulo, bairro popular que reunia uma população negra e imigrante. “Essa gente foi o meu entendimento de ser brasileira. Tudo era medo e coragem”, afirma Geiger. E, ali, elas aprenderam a imaginar.

ANNA BELLA GEIGER: LIMIAR E HANNAH BRANDT: VEJO TUDO COM O CORAÇÃO

– Quando De terça a domingo, das 10h às 18h. Até 21/09

– Onde Museu Judaico de São Paulo -r. Martinho Prado, 128

– Preço Grátis

– Classificação Livre