LISBOA, PORTUGAL (FOLHAPRESS) – O crescimento de crimes de ódio em Portugal já chama a atenção no âmbito europeu. Um relatório da ECRI, sigla em inglês para Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância, registrou “um aumento acentuado do discurso de ódio, que visa sobretudo os migrantes, os ciganos, a comunidade LGBTQIA+ e as pessoas negras”.

O levantamento, feito a cada cinco anos, constatou que as queixas judiciais contra crimes de ódio (incluindo ofensas, incitação à violência e violência propriamente dita) praticamente quintuplicaram em Portugal –de 63 em 2019 para 347 em 2024, de acordo com dados fornecidos pela polícia portuguesa.

O relatório veio a público numa semana em que o tema foi notícia em Portugal. No último dia 21 a polícia judiciária portuguesa prendeu seis integrantes do Movimento Armilar Lusitano, uma milícia neonazista. No âmbito da “Operação Desarme 3D” foram apreendidos explosivos, detonadores, facas e armas de fogo criadas com impressoras 3D –estas últimas inspiraram o nome da operação.

“Tínhamos informações que justificavam a ação policial, mas mesmo assim foi surpreendente a dimensão do armamento que encontramos”, disse Manuela Santos, coordenadora da unidade de contraterrorismo da Polícia Judiciária portuguesa, em entrevista coletiva sobre a operação.

De acordo com Santos, o Movimento Armilar Lusitano vinha sendo monitorado desde 2021, quando pregava o boicote às medidas contra a pandemia. Na coletiva, a coordenadora da investigação disse que a milícia foi montada a partir de várias estruturas de extrema direita que já existiam, como os movimentos Nova Ordem Social e 1143 –este último comandado por Mário Machado, o neonazista mais notório de Portugal, atualmente na cadeia. “Houve inclusive encontros presenciais que acompanhamos, com elementos vindos de vários pontos do país”, afirmou Santos.

De acordo com o canal de notícias Now, o Movimento Armilar Lusitano planejava um atentado contra a Assembleia da República, o Parlamento português. Santos não confirmou nem desmentiu a reportagem, afirmando que o vazamento de informações atrapalharia a investigação. Na coletiva, disse apenas que o grupo “estava a armar-se, a recrutar pessoas” e com “capacidade de treino tática para fazerem uma ação”.

Quatro dos seis detidos ficaram presos preventivamente, entre eles um integrante da Polícia de Segurança Pública —o equivalente português da Polícia Militar brasileira— cujo nome não foi divulgado.

Procurada pela Folha, a ECRI disse que “presta atenção particular a grupos que promovem racismo e intolerância”, e informa que o relatório recém-divulgado “cita vários casos de agresões envolvendo grupos neonazistas, em particular contra imigrantes”.

A ECRI não se reporta à Comissão Europeia nem ao Conselho Europeu, instâncias da União Europeia. Ela pertence a uma estrutura mais antiga, o Conselho da Europa, fundado em 1949 e que foca a área de direitos humanos.

A Comissão Europeia, no entanto, já há algum tempo demonstra preocupação com o tema. “Vários relatórios internacionais, incluindo um das Nações Unidas, constataram um aumento do discurso de ódio durante a pandemia”, diz Rita Guedes, pesquisadora do Centro de Investigação e Intervenção Social em Lisboa.

Guedes coordena a Knowhate, pesquisa abrangente sobre discurso de ódio em Portugal financiada pela Comissão Europeia. “Minha hipótese, que vem da psicologia social, é que em situações de elevada incerteza ou privação, como a pandemia, algumas pessoas procuram um culpado –e em geral se voltam contra grupos estigmatizados.”

A pesquisa coordenada por Guedes encontrou semelhanças entre o discurso de ódio em Portugal e em outros países europeus, principalmente na seara da discriminação racial.

“Há fenômenos que aparecem conectados, como a desumanização do outro, através de comparações com animais, e o recurso frequente à desinformação –em vários países, por exemplo, o discurso de ódio relaciona a imigração com questões de segurança pública.” Para a pesquisadora, o fato de o racismo não ser crime em Portugal dificulta o combate aos que o perpetram.

Pesquisas acadêmicas e investigações policiais constatam um intercâmbio envolvendo esse tipo de crime em diferentes lugares da Europa.

No dia 10 de junho, o ator português Adérito Lopes foi agredido na porta de um teatro em Lisboa. Os principais suspeitos, segundo a polícia, pertencem a grupos extremistas. Um deles, “Blood and Honour”, “Sangue e Honra”, é a sucursal portuguesa de um movimento internacional neonazista cujo nome evoca o slogan da juventude hitlerista. O grupo foi incluído no Relatório Anual de Segurança Interna de Portugal (RASI) em 2024 como “grave ameaça”, e depois retirado –possivelmente para não atrapalhar investigações em curso.

A conexão entre grupos neonazistas de várias partes da Europa pode exigir cooperação policial internacional –como sublinha o relatório da ECRI, o neonazismo não é um fenômeno exclusivamente português. Também não está descartado que milícias extremistas inspirem umas às outras.

Em 2022, a polícia alemã prendeu 25 integrantes do grupo Reichsburger (“Cidadãos do Império”), que planejavam um atentado contra o Parlamento alemão. Os dados contidos nos relatórios da ECRI e em pesquisas como a Knowhate podem ser úteis para alimentar investigações transnacionais.