SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Uma imagem em preto e branco com uma mulher amamentando um bebê estampa a capa de uma revista de 1937, sob o título “Neues Volk”, ou “Novo Povo” em alemão. Era uma publicação que circulou na Alemanha durante o regime nazista. Ali, a raça ariana –entendida como os brancos de cabelos e olhos claros de origem europeia nórdica– era exaltada.
Oito décadas depois, em 2017, outra foto mostra uma mulher grávida de pele clara deitada numa toalha xadrez azul, posta sobre uma relva. Do seu rosto só é possível ver um sorriso –o resto está fora da imagem que compõe um cartaz, escrito em alemão, que diz: “Novos alemães? Faremos os nossos!”. É uma propaganda do partido de extrema direita alemão AfD, sigla para Alternativa para a Alemanha.
O cartaz da AfD traz à tona um tema caro aos países desenvolvidos e abraçado pela extrema direita europeia: o declínio das taxas de fertilidade. Para o partido alemão, de postura anti-imigração, é um problema que não vai ser resolvido com a entrada de estrangeiros, mas com a geração de bebês por ventres alemães.
Segundo Dagmar Herzog, professora de história na City University of New York e autora de “Unworthy Lives”, sobre eugenia na Alemanha no século 20, é uma ideia que ecoa o eugenismo que imperou no regime nazista. “Movimentos conservadores em vários países do Leste Europeu têm iniciativas pró-natalistas”, ela diz, “mas eles se distanciaram, ao menos até agora, do nazismo e da eugenia.”
A historiadora afirma que as políticas nazistas uniam a promoção do controle de natalidade àqueles considerados avariados, inclusive pessoas com deficiência ou problemas de saúde mental, e pró-natalismo “para os considerados saudáveis, bonitos, fortes e inteligentes”. A AfD e outros partidos e lideranças de extrema direita na Europa, pelo menos por enquanto, parecem se distanciar desse caráter eugenista, diz Herzog.
A semelhança aparece na ideia de que a crise de fertilidade deve ser solucionada por um grupo específico de pessoas –os alemães.
No programa de governo de 2017, a AfD diz que o casamento e a família merecem proteção especial do governo, uma vez que “são o núcleo da sociedade e um pilar da coesão social”.
A imigração é descartada como solução para a crise demográfica: “[A imigração em massa] tem potencial alto para gerar conflito e não é viável economicamente”. Segundo o programa do partido, as taxas de natalidade entre imigrantes muçulmanos, mais altas do que a média nacional, vão “acelerar as mudanças étnico-culturais na sociedade”.
O documento diz, ainda, que a AfD vai “iniciar uma discussão pública para fortalecer o papel dos pais e reduzir o estigma dos papéis de gênero tradicionais”.
A versão de 2025 do programa de governo do partido de extrema direita reforça as mesmas posições. A família agora é definida como “pai, mãe e filhos” e o trabalho doméstico é visto como desvalorizado. “Na sociedade ‘woke’, mães só contam se estiverem no mercado de trabalho e se colocarem os filhos numa creche pública integral desde a primeira infância”. O programa também deixa clara sua oposição ao direito ao aborto.
Nas eleições deste ano, em fevereiro, a AfD obteve o melhor resultado nas urnas para um partido da extrema direita desde o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
A questão da falta de crianças não é de hoje. Segundo o demógrafo Frank Swiaczny, pesquisador sênior do Instituto Federal de Pesquisa Populacional da Alemanha, desde 1972 o país registra mais mortes do que nascimentos. “A taxa de natalidade média é de 1,5 filho por mulher. É baixa demais para que a população se mantenha estável ao longo do tempo”, afirma. Para garantir isso e evitar o colapso do estado de bem-estar, a taxa precisaria ser de 2,1 filhos por mulher.
Swiaczny diz que a extrema direita não é o único grupo político que prioriza a imagem da família como pilar social. O demógrafo afirma que esse movimento, associado à restrição dos direitos reprodutivos, pode ter um efeito rebote em sociedades em que a taxa de natalidade já é baixa.
Mesmo políticas de incentivo que incluem transferência direta de dinheiro e ampliação das creches não resultaram num aumento da taxa de natalidade que chegasse aos 2,1 filhos por mulher.
Em países nórdicos, considerados modelos de igualdade de gênero e bem-estar social, as taxas só caem. A Finlândia foi de 2,72 filhos por mulher, em 1960, para 1,26, em 2023. A Suécia, de 2,13 em 1990 para 1,45 em 2023 –com uma alta de 0,18 de 2003 para 2013, mas que depois só diminuiu. A Dinamarca foi de 2,57, em 1960, para 1,5, em 2023.
“Uma política conservadora com o objetivo de colocar a mulher de volta na cozinha com as crianças poderia causar uma forte queda na taxa de natalidade. Além disso, do ponto de vista dos direitos humanos, é drástico falar em coibir as liberdades das mulheres. A decisão de ter filhos e de quantos serão deve ser a escolha livre e espontânea de cada casal. A política pública demográfica não pode jamais forçar ninguém a nada para atingir determinados objetivos populacionais”, afirma Swiaczny.