RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – A morte de um jovem de 23 anos durante uma operação policial no morro Santo Amaro, na zona sul do Rio de Janeiro, interrompeu a festa de estreia da quadrilha junina João Danado na noite de 7 de junho e escancarou as dificuldades enfrentadas por grupos que mantêm viva a tradição das quadrilhas nas favelas da cidade.
Herus Guimarães Mendes, que cresceu dançando quadrilha e era cria da João Danado, foi baleado quando a comunidade se preparava para a primeira apresentação da temporada, o chamado “arraiá de estreia”, com a roupa oficial usada nos campeonatos estaduais. O jovem havia desistido de dançar neste ano por causa das dificuldades financeiras após o nascimento do filho, mas estava presente para prestigiar os amigos.
Duas semanas após a tragédia, a quadrilha decidiu refazer o evento, dessa vez em homenagem a Herus e a sua família, que incentivou os integrantes a manterem a tradição. “A princípio, a ideia era acabar com o grupo. Até que um componente me perguntou: ‘Eles venceram?’. E eu fiquei sem resposta”, diz Simone Rocha, presidente da João Danado.
Criada em 1994, a quadrilha é a única ainda em atividade na zona sul do Rio, uma região que já abrigou dezenas de grupos juninos. Fundada por moradores do Santo Amaro, ela sobrevive com recursos próprios, bingos, rifas e doações da comunidade. “Cada um faz sua roupa. Um casal de destaque chega a gastar até R$ 4.000. Tudo sai do nosso bolso”, conta Simone.
A rotina de ensaios ocorre o ano inteiro, muitas vezes em espaços improvisados. Até recentemente, o grupo ensaiava na mesma rua onde hoje os moradores tentam superar o trauma da operação. “Já tivemos que ensaiar ao lado do caveirão”, diz a presidente, em referência ao nome popular dado ao blindados usados em operações da PM.
Desde a morte de Herus, a João Danado tem recebido ajuda para prestar apoio psicológico aos integrantes, mas o medo persiste. “Tem pai dizendo que filho não dança mais.”
A realidade enfrentada pela entidade Danado não é isolada. Na zona norte do Rio, a PoDe-C Show, quadrilha do morro do Andaraí criada em 2014, também lida com o impacto da violência.
“Há duas semanas tivemos um ensaio interrompido por troca de tiros. Hoje ensaiamos fora da comunidade, em quadras de escolas de samba nas redondezas da Grande Tijuca ou Engenho de Dentro, porque o lugar que a gente pertence nos apresenta uma preocupação muito grande”, diz Márcio Dellawegah, vice-presidente e diretor artístico do grupo.
Fundada com o objetivo de ocupar jovens da comunidade, a PoDe-C cresceu e hoje é reconhecida nacionalmente. O grupo conquistou o 9º no lugar no Brasileirão 2024. “Essa cultura nasceu da favela, dos becos e vielas. Por isso, a quadrilha carioca junina tem uma essência que não se tem em lugar nenhum do Brasil”, afirma Márcio.
De acordo com a Liquerj (Liga Independente de Quadrilhas Juninas do Rio), mais de 80% dos grupos são formados por moradores de comunidades e periferias. “Temos mais de 120 grupos, mas quase todos enfrentam dificuldades com espaço para ensaio, com burocracia para realizar eventos e com falta de investimento”, afirma Felipe Machado, presidente da entidade.
“Nossos figurinos ficam cada vez mais caros, e a grande maioria dos nossos componentes não tem como arcar”, conta Jorge Rosendo, diretor de produção da PoDe-C. Segundo ele, criatividade e reaproveitamento de materiais são as principais armas contra a falta de recursos.
Apesar de um edital estadual criado em 2022, que oferece apoio financeiro a alguns grupos, a demanda é muito maior do que a capacidade de atendimento, segundo a Liquerj. A entidade pleiteia na prefeitura do Rio a criação de um decreto que facilite a realização de eventos de cultura popular nas comunidades.
Para Reymon Santos, diretor de marketing da João Danado, desistir não é uma opção. “A quadrilha é o meu ar. É ela que me dá força, que me renova, que me faz sentir vivo. É o abraço apertado quando a gente mais precisa”, diz.
Na noite do último dia 18 a João Danado refez o evento de estreia interrompido pela violência. Desta vez, a apresentação foi concluída, como um ato de homenagem e resistência. “Essa dança é por nós, pela cultura e pelo Herus”, afirma Simone.