SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A proposta do PL, partido do ex-presidente Jair Bolsonaro, de conceder anistia aos envolvidos nos ataques de 8 de janeiro de 2023 remete a pelo menos dois episódios dos 136 anos de República no Brasil, de acordo com estudiosos da história do direito.
Ainda em articulação, versões do projeto apresentadas até aqui abrem brecha para beneficiar o próprio Bolsonaro e outros réus acusados de liderar a trama golpista. O ex-presidente e aliados farão uma manifestação na avenida Paulista neste domingo (29) na qual a anistia será um dos motes.
Segundo os especialistas, a proposta do PL se parece em diversos aspectos com a anistia aprovada pelo Congresso em maio de 1956, que, entre outras determinações, impediu a punição dos oficiais da Aeronáutica envolvidos na Revolta de Jacareacanga.
Ocorrida na cidade paraense que deu nome à rebelião, o motim tentou, em vão, derrubar o recém-empossado presidente Juscelino Kubitschek.
O projeto atual também se aproxima do decreto de dezembro de 1961, que anistiou, entre outros grupos, os três chefes das Forças Armadas. Eles tinham tentado impedir, meses antes, a posse de João Goulart como presidente depois da renúncia de Jânio Quadros. Mais tarde, em 1964, os militares tentariam um novo golpe, desta vez, bem-sucedido.
Para Raphael Peixoto, professor da pós-graduação em direito da Universidade Federal Rural do Semiárido (Ufersa) e pesquisador da Universidade de Brasília (UnB), os contextos de 1956 e 1961 “se assemelham muito ao que vemos hoje porque são crises constitucionais vinculadas à disputa pela Presidência”. A mais famosa das anistias do país, a de 1979, está inserida, por exemplo, em um outro contexto, uma transição de regime.
Segundo ele, que é estudioso das anistias políticas ao longo do período republicano, os dois episódios e a proposta da atualidade fazem parte de um mesmo modus operandi, a “estratégia de conciliação intra-elites para lidar com essas crises que violam a Constituição do país”.
“Aqueles que participaram desses movimentos falavam em conciliação, em esquecer o que tinha passado e olhar para frente. Do ponto de vista histórico, no entanto, essas anistias têm um sentido de impunidade de militares e civis que atentaram contra a Constituição”, diz Peixoto.
O professor ressalta ainda que “aquelas são as nossas primeiras experiências de democracia de massas, com partidos nacionais e uma polarização muito grande”. As realidades políticas das anistias anteriores, ocorridas na Primeira República e na Era Vargas, são bastante distintas do contexto atual.
A denúncia contra Bolsonaro, que divide o banco dos réus com militares de alta patente, abrange a discussão de minutas para reverter o resultado da eleição a partir de medidas como estado de defesa e de sítio. Os participantes do 8 de Janeiro pretendiam gerar uma situação de caos para motivar uma intervenção militar.
Em 1961, o poder estava nas mãos de Jânio, que tinha na sua chapa os conservadores da UDN. Quando ele renunciou, em agosto daquele ano, o caminho indicado pela Constituição era a posse do vice, João Goulart, do PTB, legenda ligada ao trabalhismo -à época, a votação para presidente e vice era separada, assim, como havia ocorrido com Jânio e Jango, os eleitos não estavam necessariamente na mesma chapa.
Os ministros militares do governo de Jânio e outros expoentes das Forças Armadas, entretanto, rejeitaram abertamente a posse de João Goulart, acusando-o de ser comunista.
Do lado oposto, Leonel Brizola, então governador do Rio Grande do Sul, liderou o movimento que exigia Jango na presidência, obtendo o apoio do comandante do 3º Exército, o general Machado Lopes, fato que provocou um racha na cúpula militar.
Com uma articulação encabeçada por Tancredo Neves, o parlamentarismo surgiu como uma saída possível. Assim, Goulart se tornaria presidente, mas teria menos poder do que se o presidencialismo estivesse mantido.
Conforme apontou Peixoto em sua pesquisa, ao mesmo tempo em que se costurava tal solução, também se iniciava a discussão sobre uma anistia aos que tentaram impedir a posse de Jango. Na época, o debate foi marcado por políticos que viam a medida como impunidade e defendiam a necessidade de punição.
Aprovado o texto, os chefes das Forças Armadas saíram ilesos após agirem de modo inconstitucional.
Entre os beneficiários da anistia de 1961, que foi ampliada durante sua tramitação, estavam ainda os envolvidos na Revolta de Aragarças, ocorrida dois anos antes e que tentou derrubar o governo JK.
Alguns dos militares envolvidos no episódio já tinham participado da Revolta de Jacareacanga -anistiada em 1956, quando se perdoou não apenas o grupo de revoltosos como também o então ministro da Guerra, Henrique Lott, líder de uma ação que ficou conhecida como Novembrada, no fim de 1955.
Acompanhado de dezenas de generais, Lott determinou que os tanques saíssem às ruas para derrubar o presidente interino Carlos Luz, que planejava impugnar a posse do presidente eleito, Juscelino Kubitschek. O objetivo do contragolpe era garantir a legalidade democrática. Para cumprir esse fim, no entanto, Lott se valeu de meios inconstitucionais.
“Esses casos de 1956 e 1961 não são apenas quarteladas. Refletem o descontentamento de um determinado grupo político que se vê, de alguma maneira, alijado do poder”, afirma Diego Nunes, professor de história do direito penal da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e organizador do livro “Crimes Contra o Estado Democrático de Direito”.
Para Nunes, a proposta atual se aproxima em pelo menos um aspecto da anistia de 1979.
“O que me parece ser um ponto em comum nessa estratégia de 1979 em relação à anistia proposta agora é a ideia de autoanistia, ou seja, uma anistia para aqueles que estavam no poder no final da década de 1970 e para aqueles que agora, em 2025, mantêm uma grande força no Congresso e são ligados a esses grupos [golpistas]”, afirma.
Segundo Nunes, o problema central do projeto bolsonarista é a tentativa de “reabilitação preventiva” dos líderes políticos que se tornaram réus.
O perdão a Bolsonaro e a anistia ao 8 de Janeiro já são tratados abertamente como pauta eleitoral de 2026. Recentemente, o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) afirmou que o compromisso de conceder um indulto a seu pai era condição para receber apoio do ex-presidente.
A professora de direito penal da FGV Raquel Scalcon afirma que, em geral, a anistia implica extinguir a punibilidade a um fato, como seria o caso do 8 de Janeiro, enquanto o indulto beneficia um grupo de pessoas e a graça, indivíduos em específico. Outra diferença, segundo a interpretação corrente, é que a anistia abrangeria também efeitos secundários, como a inelegibilidade pela Lei da Ficha Limpa.
Enquanto a anistia é competência do Congresso, indulto e graça podem ser concedidos pelo presidente da República. No campo da direita, os governadores de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), e de Goiás, Ronaldo Caiado (União Entenda os episódios que se aproximam da proposta atual de anistia:
Anistia de 1956
Era fevereiro de 1956, apenas dez dias depois da posse de Juscelino Kubitschek, em 31 de janeiro daquele ano, quando oficiais da Aeronáutica começaram o movimento que ficou conhecido como Revolta de Jacareacanga. O objetivo era derrubar o novo governo. Com apoio do próprio JK, a anistia foi aprovada pelo Congresso e publicada meses depois.
Além do episódio de Jacareacanga, também foram anistiados os que tiveram participação no contragolpe em novembro de 1955, que derrubou o então presidente interino, Carlos Luz, diante da perspectiva de que ele planejava impugnar a posse de JK. Apesar de ter como objetivo garantir a legalidade democrática, tal ação se valeu de meios inconstitucionais.
Anistia de 1961
Em 1961, depois de o então presidente Jânio Quadros renunciar ao cargo, o caminho indicado pela Constituição era a posse do seu vice, João Goulart. No entanto, os ministros militares do governo de Jânio rejeitaram abertamente a posse de Jango, acusando-o de ser comunista. Houve resistência, e o movimento acabou não sendo totalmente bem-sucedido.
Como solução intermediária, aprovou-se o parlamentarismo, que reduziu os poderes de Jango como presidente. Ao mesmo tempo em que se debatia tal solução, iniciava-se a discussão sobre uma anistia e, com isso, os chefes das Forças Armadas saíram ilesos após agirem de modo inconstitucional.
Entre os beneficiários da anistia de 1961, que foi ampliada durante sua tramitação, estavam ainda os envolvidos na Revolta de Aragarças, ocorrida dois anos antes e que tentou derrubar o governo JK. Alguns dos militares envolvidos no episódio já tinham participado de Jacareacanga em 1956.