SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Conversas sobre o crime organizado, antes restritas ao ambiente da crônica policial, ganham espaço inusitado no coração financeiro do Brasil: quem frequenta as sedes de bancos e empresas na região da avenida Faria Lima, em São Paulo, está preocupado com o PCC (Primeiro Comando da Capital) e o CV (Comando Vermelho).

Investidores estrangeiros querem entender como essas facções estão agindo no mercado brasileiro e, à mesa, em almoços e jantares, os principais homens de negócio do país discutem como podem ser afetados.

A Folha entrevistou empresários, gestores de fundos –inclusive internacionais–, economistas e líderes de entidades e ouviu a mesma preocupação: as facções estão encontrando brechas na economia formal, ameaçando não apenas os ganhos de grandes empresas que atuam na legalidade, mas também a segurança do ambiente de negócios.

A leitura é que, se os criminosos chegarem a comprometer grandes companhias de São Paulo, perde-se o Brasil.

“O crime organizado, de todas as vertentes e tamanhos, está entrando com tudo numa série de setores, criando concorrência desleal para quem trabalha na legalidade”, disse à Folha o empresário Rubens Ometto, controlador do grupo Cosan, que atua em áreas como ferrovias, usinas de açúcar e álcool, distribuição de combustíveis.

Operações policiais já indicaram que as facções estão se infiltrando em áreas tão diversas quanto refino, distribuição e venda de combustíveis, mercado imobiliário, transporte privado e público, clínicas odontológicas e diferentes serviços, como de internet, saúde, limpeza urbana, coleta de lixo e até no setor financeiro.

Uma investigação identificou gente ligada ao PCC em agências que cuidam da carreira de funkeiros, sem que os artistas tivessem a menor ideia.

Está sob investigação até a atuação desses grupos no Congresso e no Judiciário, onde buscam garantir leis que possam manter as brechas permeáveis à manutenção do crime dentro da economia.

Analistas que preferem não ter o nome citado afirmaram à Folha ter obrigação profissional de medir esses riscos para os investidores, por mais desafiador que isso seja. No mercado financeiro, alguns usam até um apelido para designar os grupos ilegais: “ala business do PCC”.

Não é de agora que tráfico, milícia e criminosos em geral criam problemas para negócios formais. Há 20 anos, empresas como a Copagaz começaram a enfrentar problemas para vender um simples botijão de gás nas comunidades do Rio de Janeiro. A distribuidora Light sofre com roubos de cabos. Só de janeiro a abril deste ano foram furtados 58 mil metros, o suficiente para dar 62 voltas ao redor do Maracanã.

Mas, do lado do crime organizado, agora é diferente. Ocorreu uma mudança no modus operandi das facções a partir da pandemia da Covid-19, diz o promotor de Justiça Fábio Bechara, integrante do Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado) do Ministério Público do Estado de São Paulo.

Apesar de ainda persistirem antigas práticas, como a venda de produtos ilegais obtidos por meio de roubo, contrabando, adulteração e falsificação, representantes das facções passaram a aproveitar brechas legais para se infiltrar nas estruturas dos negócios.

Em comparações simples, mas ilustrativas: “Se antes os criminosos precisavam enterrar dinheiro, agora alguns já lavam recursos por meio de uma fintech aberta por parceiros; se antes saqueavam transportadoras para vender segurança ou ter influência sobre a empresa, agora tentam manter as suas próprias frotas”, diz Bechara.

É um novo ambiente, complexo e desafiador, pois é necessário refinar a apuração para separar lícito de ilícito. A empresa pode ser formal, prestar serviços, mas ter sido criada com dinheiro da venda de cocaína e ter traficantes entre os sócios.

“Nas investigações, a gente tem a preocupação de trabalhar com dados e evidências, filtrando o que é boato e exagero, até para não distorcer a ação da política pública ou criar temor desnecessário que possa impedir o bom funcionamento da economia”, diz o promotor de Justiça do Gaeco Lincoln Gakiya, que atua com a investigação de facções criminosas, especialmente o PCC, há mais de duas décadas.

“Mas é fato que as facções estão constituindo empresas que não são de fachada –operam na economia formal.”

Em São Paulo, afirma Gakiya, uma demonstração disso veio com a Operação Fim da Linha, que encontrou o PCC em duas empresas de ônibus que chegaram a transportar cerca de 700 mil passageiros diários nas zonas sul e leste da capital paulista.

A facção se infiltrou nas licitações de transporte público sem seguir a cartilha da criminalidade tradicional. Formou uma rede de advogados especializados em concessões públicas, criou as empresas e seus perfis, disputou e ganhou a licitação. A estratégia de combate também precisou ir por outra vertente, mostrando o desafio da situação: denunciar a concessão para tirar essas empresas da operação.

No setor imobiliário, os investigadores se depararam com uma engenharia financeira inusitada. Em sua colaboração, antes de ser assassinado a tiros na entrada do Aeroporto Internacional de Guarulhos, o empresário Antônio Vinícius Lopes Gritzbach detalhou como o crime organizado estava usando os FIPs (Fundos de Investimento em Participações). Não eram FIPs exclusivos do PCC, mas papéis que recebiam aplicações de investidores em geral.

Um advogado de um importante escritório paulista, que atua na área empresarial, já se deparou com esse problema, que qualificou como gravíssimo para os seus clientes. Afirma que, como as estruturas societárias se tornaram muito sofisticadas, é difícil identificar quem é o verdadeiro dono de uma empresa com quem se faça qualquer transação. Ou seja, o temor de gente séria e honesta é estar trabalhando, sem saber, com o PCC.

Um dos setores em que a ação dos criminosos tem gerado grande preocupação é o de combustíveis. Segundo as autoridades, o fato de ele ter falhas de regulação e de fiscalização abriu espaço para inúmeras práticas ilegais, antes até de qualquer relação com PCC e CV –adulteração, sonegação, fraudes em medição de bombas, importação ilegal de nafta. Todos os elos da cadeia estão comprometidos, incluindo refino, distribuição, transporte e fornecimento ao consumidor na bomba. Agora, exige investigação redobrada para identificar onde estão as facções.

“Estamos diante de uma situação muito delicada, não apenas pela concorrência desleal que o crime cria para empresas formais, mas pela insegurança que gera, tanto regulatória quanto para o ambiente de negócios”, disse à Folha Paulo Gonet, procurador-geral da República que acompanha o problema em nível nacional.

Gonet defende que um instrumento importante para deter o avanço de facções dentro do tecido da economia formal é a instituição do Gaeco Nacional. O organismo, diz, vai unificar as ações das procuradorias no combate a grupos criminosos.

Segundo a Folha apurou, os riscos do crime organizado na economia e a busca de alternativas para deter seu avanço já foram discutidos até em organismo como o CDPP (Centro de Debate de Políticas Públicas), think tank independente e suprapartidário que reúne uma elite de pensadores da economia nacional.

A Febraban, federação que representa os grandes bancos, preocupada com a possibilidade de uso de algumas fintechs por criminosos, defende a antecipação do prazo para que todas essas instituições se regularizem e peçam autorização junto ao Banco Central.

“Embora a concorrência seja bem-vinda e saudável, tem de ocorrer em condições de igualdade, particularmente na observância das regras prudenciais e de prevenção a lavagem de dinheiro”, destacou em nota enviada à reportagem.

A USP (Universidade de São Paulo) também se dedica a pesquisar e apresentar soluções para a infiltração do crime organizado por meio da Esem (Escola de Segurança Multidimensional), do IRI (Instituto de Relações Internacionais). Em dezembro do ano passado, fez o seminário “A Grande Convergência: Crime Organizado e a Infiltração nas Cadeias Produtivas no Brasil”.

“Existe a preocupação de tentar minimizar o impacto do processo de infiltração do crime nos setores produtivos”, explica Leandro Piquet, coordenador da Esem que tem dedicado especial atenção ao tema.

“Essa mudança, do crime violento e predatório para os crimes baseados em mercado, é uma realidade global, e o Brasil está nisso, de forma acelerada, porque está cheio de lacunas e de brechas regulatórias –e essas oportunidades são capturadas por organizações criminosas por meio de múltiplos vínculos.”

O caráter transnacional desse tipo de crime e a necessidade de um combate orquestrado mobilizam organismos como o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento). Em dezembro passado, lançou a Aliança para a Segurança, a Justiça e o Desenvolvimento, uma plataforma para facilitar a colaboração contra ilícitos, que já tem a adesão de 22 países.

Para o presidente do BID, Ilan Goldfajn, a estratégia contra facções deve ser similar à adotada contra o terrorismo: identificar a fonte do dinheiro, segui-la e interrompê-la. Em suas palavras, “cortar o oxigênio do crime organizado”.