SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Morador da avenida Paulista há 13 anos, o filósofo Marcelo Sando viu da janela de casa a materialização das teorias lidas nos livros ao conviver com o excesso de barulho todos os domingos, quando a via fica fechada para o trânsito e é ocupada por dezenas de músicos e bandas. “Estamos vivendo uma situação concreta de crise de convivência, de contrato social.”
A situação o fez mobilizar moradores para exigir regulamentação mais clara da ocupação do espaço público durante o programa Paulista Aberta, que completa dez anos neste sábado (28).
Nessa mesma data, em 2015, a emblemática avenida fechou para os carros e se transformou em uma área de lazer, em caráter experimental, para marcar a inauguração da ciclovia construída no canteiro central. E foi a partir do fim de agosto daquele ano que a iniciativa virou rotina na cidade, de forma fixa aos domingos.
O mesmo havia sido feito em 2005, durante a gestão da ex-prefeita Marta Suplicy (PT), porém com edições esporádicas.
Até a criação definitiva do programa, a interdição da avenida pela gestão do ex-prefeito Fernando Haddad (PT) foi questionada pelo Ministério Público, autor de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) de 2007 que proíbe eventos na Paulista, com exceção da corrida de São Silvestre, a festa de Ano-Novo e a Parada do Orgulho LGBTQIA+.
A ideia deu origem ao programa Ruas Abertas, que se estendeu para outras vias na cidade, e se tornou permanente, por meio de decreto, um ano depois, em junho de 2016.
A proposta foi criada como um incentivo ao uso da bicicleta e ao transporte público para reduzir a circulação de carros na cidade, segundo o vereador Nabil Bonduki (PT), secretário de Cultura da gestão Haddad. “Muitos consideravam impossível, mas a Paulista Aberta fazia parte de uma lógica para mudar o modelo de mobilidade na cidade. Logo em seguida, fechamos o Minhocão também.”
Hoje, a Paulista fica menos tempo aberta aos pedestres aos domingos e feriados –das 9h às 16h, sendo que já chegou a operar até as 19h– e se tornou palco de interesses conflitantes entre moradores incomodados com o barulho e músicos interessados na multidão que a elegeu como opção de lazer.
Bonduki reconhece que, dez anos depois, o programa demanda regulamentação. “Virou uma grande arena cultural. Isso vem gerando impacto negativo em termos de ruído e a ideia final de artistas ocupando as ruas. Existem abusos.”
O parlamentar se refere à denúncia da gestão do prefeito Ricardo Nunes (MDB) que acusa músicos de lotear espaços na avenida aos domingos para oferecer aluguel de equipamentos de amplificação a pessoas interessadas em se apresentar.
O músico Kike Damaceno nega as acusações e diz que são colegas interessados em ajudar artistas que vêm de outros estados e cidades sem recursos para arcar com o transporte dos equipamentos. Ele é representante dos artistas no grupo de trabalho formado há cerca de três meses pela subprefeitura da Sé para debater questões em torno do Paulista Aberta. “São empresas que cedem os equipamentos.”
Damaceno assumiu a liderança do movimento após uma ação da subprefeitura com a GCM (Guarda Civil Municipal) que confiscou instrumentos de alguns músicos que tocavam na Paulista, no final de janeiro, o que provocou protestos. Ele conta que está previsto para o próximo mês o lançamento da música “O Som da Paulista”, composta como manifesto por músicos que ocupam a avenida aos domingos.
“Foi discutida a criação de uma regulamentação, mas não se resolveu muita coisa. As pessoas de fora do grupo de trabalho acabam violando as regras porque não sabem os limites de barulho permitidos. Falta fiscalização da prefeitura”, diz o músico.
O grupo de trabalho deu lugar a um comitê de conciliação que teve a primeira reunião recentemente. A medida é prevista no decreto que criou o Ruas Abertas, mas não foi colocado em prática, segundo Bonduki.
Além dos músicos e bandas independentes, a avenida é ocupada aos domingos por igrejas evangélicas que levam piscinas infláveis para batizar fiéis, raves de música eletrônica e ensaios de bateria de universidades.
Uma das ideias debatidas é a criação de boulevares culturais para dispersar as apresentações musicais por outras regiões da cidade. “Não queremos limitar, senão deixa de ser espontâneo, deixa de ser arte de rua”, diz Damaceno.
Na tentativa de amenizar o efeito da miscelânea de sons altos todos os domingos, o morador Sando, criador do movimento Paulista Boa para Todos, encomendou um estudo acústico com mapa de ruído que concluiu que a Paulista funciona como uma espécie de cânion urbano, formado pelos prédios, e que o som tende a se propagar para cima. Existem na avenida 17 prédios residenciais onde vivem cerca de 6.000 moradores.
Para medir o barulho, foram instalados medidores de decibéis em tempo real na fachada dos prédios residenciais e, caso o som ultrapasse o limite de 65 decibéis, a prefeitura é notificada. “O programa original foi desvirtuado, que era transformar a avenida em um parque. As pessoas aproveitam que a via está fechada para fazer eventos, o que é proibido”, diz Sando.
A fiscalização, porém, esbarra em falta de uma legislação clara sobre o assunto, segundo Sando. O Programa de Silêncio Urbano (Psiu) da prefeitura só regula excesso de ruído em locais fechados, como bares e casas noturnas. Há ainda o decreto municipal dos artistas de rua, que permite apresentações até as 22h em locais públicos, sem regulamentação.
Em nota, a Subprefeitura Sé afirmou que fez um projeto-piloto para regulamentar a ocupação de artistas na Paulista e que a próxima reunião será agendada.
A GCM disse que presta apoio e proteção aos agentes municipais durante a fiscalização de comércio irregular e que não apreende mercadorias.
Em relação à redução de horas da Paulista Aberta, em comparação com o projeto original, a gestão Nunes afirmou que se trata de uma padronização para facilitar as ações da gestão municipal de zeladoria, limpeza e fiscalização, além de melhorar a utilização do espaço público.