SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O drama do submersível Titan foi uma das grandes histórias de 2023, capturando a atenção do mundo todo quando o veículo de turismo implodiu a quase 4.000 metros de profundidade no Atlântico durante uma visita aos destroços do Titanic, matando todos os passageiros. Dois anos depois, um documentário traz a história por trás da história –um conto cautelar importante que fala sobre muito mais que o incidente em si, mas comenta sobre essa estranha época em que bilionários com empreendimentos excêntricos tentam inspirar o público com sonhos improváveis, quando não impossíveis.

“Titan: O Desastre da OceanGate” (Netflix, 1h51), com direção e produção de Mark Monroe, é um filme cuidadoso, que evita fazer exploração barata da tragédia (quem teme gatilhos sobre o sofrimento que as vítimas podem ter tido nos momentos antes da implosão pode se tranquilizar, o documentário nem sequer aborda esse aspecto, escolha sem dúvida para melhor), procurando em vez disso entender o que levou ao incidente.

No coração do drama está o excêntrico bilionário Stockton Rush, fundador e CEO da OceanGate, empresa criada em 2009 para promover turismo submarino de forma acessível (ao menos para quem é rico). Conversando com ex-funcionários da empresa e investigadores do desastre, o documentário pinta Rush como alguém que ambicionava atingir a popularidade de outros bilionários, como Jeff Bezos e Elon Musk. Mas, em vez de se voltar para o espaço, como fizeram aqueles, Rush se voltou para os oceanos.

Seus planos, concretizados na OceanGate, envolviam o desenvolvimento de submersíveis que pudessem ser operados com mais praticidade e menor custo, baseados em novos materiais inovadores. Rush estava convencido de que poderia produzir um veículo seguro para visitas constantes ao fundo do mar com um casco baseado em fibra de carbono –material de grande resistência, mas que traz peculiaridades que o tornam menos adequado para lidar com o ambiente de altíssima pressão externa que se manifesta a grandes profundidades.

Ao traçar o perfil do bilionário, o documentário o caracteriza como um herdeiro abastado proveniente de uma família tradicional dos EUA (com descendentes diretos que remontam à declaração de independência do país) que fez da arrogância sua principal marca, combinada a algum nível de sociopatia e a um discurso paradoxalmente inspirador sobre abrir as fronteiras do oceano profundo para a humanidade.

As declarações de ex-funcionários da OceanGate mostram que a convicção de Rush de que ele era uma espécie de gênio infalível –a despeito das constantes falhas e escolhas terríveis feitas na condução do rumo da empresa– era genuína. Tanto que, mesmo após muitos avisos, protestos e demissões (envolvendo funcionários que preferiram se afastar da empresa e outros que acabaram dispensados por Rush após apresentarem críticas fundamentadas às decisões tomadas), o bilionário mantinha convicção na segurança de seu submersível a ponto de participar de praticamente todas as expedições ao fundo do mar –inclusive a que acabou com sua morte, ao lado de outros quatro passageiros, em 18 de junho de 2023.

Na época, houve muita especulação sobre o que significava a perda de contato com o veículo e as possibilidades de sobrevivência enquanto forças combinadas dos EUA e do Canadá faziam as buscas pelo submersível. Dias se passaram, enquanto o mundo contava quantas horas ainda haveria de oxigênio para a tripulação perdida, sem saber que todos estavam mortos e o submersível havia implodido violentamente, matando de forma instantânea os ocupantes.

O documentário levanta uma outra história –a de como aquela era uma tragédia anunciada, que muitos funcionários da OceanGate tentaram impedir, sem sucesso, ao apontar as falhas de projeto que garantiriam que, cedo ou tarde, o casco de fibra de carbono do Titan falharia e levaria a uma tragédia.

Um dos personagens mais importantes dessa guerra de bastidores é David Lochridge, diretor de operações marinhas da OceanGate que em 2018 já alertava sobre os riscos, o que levou à sua demissão e a uma batalha judicial contra a companhia de Rush.

O mais surpreendente ao acompanhar o documentário, na verdade, é saber que o Titan de fato conseguiu fazer expedições de visita ao Titanic, começando em 2021, antes de uma tragédia irredimível. Ainda assim, fica claro que todas elas tiveram problemas sérios, alguns deles causados pessoalmente por Rush.

É inevitável, ao fim, comparar a tragédia da OceanGate ao que vemos em outras empresas inovadoras lideradas por bilionários excêntricos, como a SpaceX de Elon Musk e a Blue Origin de Jeff Bezos. É bem possível que ambos sejam tão inconsequentes e envoltos em húbris quanto Stockton Rush, mas a área de atuação de ambos faz diferença.

Ao fornecer serviços para governos na área espacial, e operar claramente sob jurisdição americana, a SpaceX e a Blue Origin estão sob fiscalização muito mais intensa do que a OceanGate –intencionalmente concebida, segundo o documentário, para evitar isso, operando em águas internacionais, num regime de turismo de aventura (todos os passageiros tinham de assinar um termo em que reconheciam o risco de ferimento ou morte ao embarcarem num veículo experimental), sem qualquer supervisão externa.

Cada falha da SpaceX ou da Blue Origin conduz a investigações que obrigam a empresa a dar conta dos problemas encontrados e aprimorar a segurança, o que impede que convicções pessoais de seus CEOs se sobreponham ao interesse público. Não era o caso da OceanGate, como fica claro no documentário, que se encerra notando que a tragédia não produziu qualquer consequência jurídica.