SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Sentado numa cadeira de rodas, o barítono Johny França lamenta, graceja e resmunga com sua voz retumbante, cercado por uma orquestra guiada pelo maestro Rodrigo Toffolo. Marcelo Rubens Paiva assiste ao seu intérprete de um mezanino no andar de cima da casa onde acontece um ensaio da adaptação de “Feliz Ano Velho”, livro de estreia do escritor, para ópera.

“Tem duas coisas que nos fazem acreditar que a gente chegou lá -ser tema de palavras cruzadas e virar uma ópera”, diz o autor, que realizou ambos os feitos.

A adaptação de “Feliz Ano Velho” pela Orquestra Ouro Preto estreia neste sábado num show gratuito na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, com a participação especial de Arrigo Barnabé. Como no livro, é contada a história do acidente de Paiva, que lesionou sua coluna e o deixou tetraplégico aos 20 anos.

“Fico completamente atordoado, nunca imaginei que chegaria a este ponto”, afirma o escritor. “É uma obra que virou atemporal. Tem conflitos ali que são eternos -as dúvidas existenciais de um garoto, a crise de uma mãe vendo o filho sofrer, a falta que um pai faz na sua vida.”

A ópera faz parte da programação que comemora os 25 anos da Orquestra Ouro Preto, grupo mineiro interessado em levar a música de orquestra a novos públicos. Tim Rescala, responsável pela trilha e pelo libreto, decidiu adicionar guitarra e bateria à partitura para trazer um pouco da paisagem sonora dos anos 1980, em que a história se passa.

“A guitarra é a personalidade do Marcelo na obra”, afirma Toffolo, o maestro. “Quando inventaram a clarineta, botaram na orquestra. Quando inventaram o xilofone, o vibrafone, também colocaram. Teve um momento em que a orquestra passou a ser guardiã de um patrimônio da humanidade, mas parou de olhar para frente.”

Toffolo diz que não sabia da adaptação de “Ainda Estou Aqui” para o cinema quando começou a conversar com Paiva sobre a ópera. Se, por um lado, ele sabe que terão de lidar com a expectativa de quem assistiu ao filme, também reconhece que o burburinho em torno do autor vai atrair público para suas apresentações.

A proposta da Orquestra Ouro Preto não é dar ênfase ao lado político da história, como foi feito pelo filme de Walter Salles. O que se destaca no libreto é como Paiva superou, por meio da literatura, o trauma do acidente que o prendeu a uma cadeira de rodas. Não à toa, a cena de abertura da atração é a da festa de lançamento de “Feliz Ano Velho”, em 1982, episódio que o autor considera o mais transformador de sua vida.

Outra novidade em relação aos livros de Paiva, o filme de Salles e adaptações para o teatro como a de Paulo Betti, nos anos 1980, é o retrato de Eunice Paiva, interpretada por Marília Vargas na ópera.

“Tim Rescala queria que a Eunice fechasse um dos atos com uma ‘Ave Maria Brasileira’. Falei com o Marcelo e ele me confidenciou o lado religioso da mãe dele. Olha aí, uma Eunice que ninguém esperava ver, católica fervorosa.”

À parte a felicidade de ver sua obra alcançar um novo formato, outro motivo para o escritor se interessar pelo projeto foi a cidade da orquestra. Por coincidência, foi lá que ele decidiu ser artista, ao assistir a uma montagem da peça “Rasga Coração”, de Oduvaldo Vianna Filho, ao visitar o lugar quando jovem para um encontro do movimento estudantil. “Quando eu ouvi a Orquestra Ouro Preto, me arrepiei”, diz o escritor. “Foi ali que vi o potencial de transformação política da arte, tão denso quanto o da militância.”

Depois de sua estreia agora na praia do Rio de Janeiro, a ópera de “Feliz Ano Velho” será apresentada em Belo Horizonte, no mês de agosto. A orquestra também tem em sua programação shows com a cantora Mart’nália e apresentações com músicas eternizadas pelos Beatles.