FOLHAPRESS – Tarek cresceu no Cairo sabendo que “nunca somos mais do que aquilo que a sociedade espera de nós”. Dele, a sociedade egípcia queria que estudasse, comprasse um apartamento, se casasse e tivesse filhos. Mas ele queria ficar com o jovem Ali, por quem estava apaixonado.

Essa tensão move o romance “O que Sei de Você”, do canadense Éric Chacour. O livro saiu em 2023 e virou um dos mais recentes sucessos editoriais de temática LGBTQIA+. Premiado, chega agora ao Brasil pela DBA, com tradução de Letícia Mei.

A história se passa nos anos 1980. Tarek vem de uma família cristã de origem síria que chegou ao Egito no século 19 fugindo de um massacre. Filho de um renomado médico, ele estuda medicina e abre uma clínica em um bairro de classe baixa, onde conhece o seu par romântico.

É curioso que Chacour se concentre nessa comunidade de imigrantes. Com isso, conta uma história habitada por personagens que fogem à norma. A história de Tarek, ademais, cruza com a da comunidade armênia —também refugiada no Egito depois de massacres.

A inspiração é a própria família do escritor. Chacour descende de imigrantes sírios e libaneses que se estabeleceram no Egito na virada do século 19 para o 20, quando a região ainda fazia parte do antigo Império Otomano.

Há um outro paralelo, ainda. Os pais de Chacour imigraram depois para o Canadá, onde ele nasceu. Seu protagonista, Tarek, faz o mesmo caminho e, ao tentar escapar das pressões de uma sociedade conservadora, se instala em Montreal.

Em entrevistas, Chacour explica que começou a escrever o livro mais de dez anos atrás, como um homenagem àquela sociedade multicultural que já deixou de existir no Egito. As políticas de nacionalização de Gamal Abdel Nasser levaram diversos grupos a deixar o país. Uma grande parte dos judeus egípcios, diga-se de passagem, foi para o Brasil.

Além da temática excepcional —um romance entre dois homens na comunidade levantina no Egito dos anos 1980—, o livro de Chacour se destaca por como descreve o fenômeno histórico e social da imigração.

É um texto sensível e reflexivo sobre a razão pela qual as pessoas deixam suas terras natais e o que acontece com elas em seguida. A humanidade, sugere o narrador, é feita de nômades que se assentaram e que anseiam por se mover. O movimento causa rupturas em quem parte e também em quem fica.

Quando Tarek se muda para o Canadá, ele deixa para trás “uma língua que cessará de viver” e “um apelido que ninguém mais pronunciará”. Ele se torna um estrangeiro não apenas em Montreal, mas também no Cairo, de onde já não se sente mais parte. Afasta-se de sua família, prejudicada por uma dinâmica de abandonos, frases não ditas e ressentimentos.

O livro é também notável por sua estrutura. É escrito em primeira pessoa, com um narrador que parece contar a história de Tarek a ele mesmo, referindo-se ao protagonista como “você”. O recurso provê algum grau de mistério ao texto em relação a quem narra a história e por que razão.

Chacour peca um pouco, no entanto, na caracterização da sociedade egípcia. Há um excesso de referências óbvias. O escritor usa imagens desgastadas, como a borra do café, as ruas tortuosas e as tempestades de areia. Quando o narrador fala em “maktub”, a ideia de que tudo está escrito, parece um personagem da novela brasileira “O Clone”, de 2001.

A impressão é que Chacour quis aproveitar sua experiência em uma família egípcia e suas frequentes viagens ao Cairo, além de suas pesquisas literárias. O desafio, nessas situações, é dosar a mão e não fazer com que os personagens pareçam ser estrangeiros como o escritor.

Incomoda, também, o desenvolvimento da sexualidade de Tarek. Chacour não explora a descoberta, que poderia estar na base do personagem. Tampouco descreve a experiência transformadora do sexo. É bem mais conservador na escrita do que outro sucesso LGBTQIA+ dos últimos anos, “Me Chame Pelo Seu Nome”, de André Aciman, que causou furor descrevendo a intersecção entre sexo e frutas.

O QUE SEI DE VOCÊ

– Avaliação Muito Bom

– Preço R$ 84,90 (272 págs.)

– Autoria Éric Chacour

– Editora DBA

– Tradução Letícia Mei