BUENOS AIRES, ARGENTINA (FOLHAPRESS) – Para quem olhar de fora, pode até parecer uma cena de filme: alguém chega nervoso e olhando para os lados a uma sala discreta, levando uma bolsa, mochila ou pochete cheia de dólares. Lá dentro, outra pessoa espera, com caneta e papel e sem tempo a perder.
Apesar de experimentar um crescimento no número de financiamentos bancários, o processo de compra e venda de imóveis na Argentina ainda é majoritariamente feito à moda antiga: em dinheiro vivo e não em qualquer dinheiro.
O uso de dólares para operações de maior valor é comum no país, considerando a falta de confiança na moeda local, o peso argentino, devido à sequência de desvalorizações. A divisa norte-americana foi se tornando a primeira opção para poupança.
Nas imobiliárias de Buenos Aires é mais frequente que os anúncios de locação sejam em pesos e os de venda em dólares. Às vezes, os contratos de aluguel também são negociados em moeda estrangeira, o contrário é raro.
A história recente também levou os argentinos a desconfiarem do sistema bancário, com o trauma do confisco de dólares de 2001 ainda fresco na memória de muitas famílias. Muitos preferem guardar o dinheiro em casa, escondido em lugares inusitados, como vasos de plantas ou em fundos falsos de móveis.
Na compra e venda de propriedades, o vendedor pode solicitar que a operação seja feita em um escritório privado ou na sala reservada de um banco, pedindo que o tabelião, que é quem assinará a escritura, vá até a instituição com os papéis para que o comprador os assine. Uma alternativa comum é o dono do imóvel alugar um cofre particular no banco onde a escritura será registrada.
Para o comprador que não quer guardar grandes somas no banco e nem se arriscar carregando os dólares, há estratégias elaboradas para transações de maior valor, como levar os recursos aos poucos ao banco, depositá-los em uma conta-corrente e transferir o valor ao proprietário.
Em busca de dólares para reduzir a perda de reservas do país, o governo de Javier Milei lançou no mês passado um programa para convencer o argentino a tirar os dólares do colchão sem precisar explicar a origem do dinheiro, retirando a obrigação de informar ao Fisco em diferentes operações, incluindo imobiliárias. As medidas foram transformadas em lei na última quinta-feira (5).
Agora, o limite para usar os dólares sem comprovar a origem foi aumentado para US$ 200 mil, e a expectativa do governo é de que mais pessoas com dinheiro não declarado tragam os recursos para o sistema.
O mercado passa por um bom momento. O número de novas escrituras de compra e venda de imóveis na capital argentina cresceu 50,5% em abril, em relação ao mesmo mês de 2024, somando 5.471 registros, enquanto o valor das transações aumentou 160,4%.
Segundo avaliação da associação de escrivães, abril foi o 35º mês consecutivo de crescimento interanual de vendas de imóveis e eles atribuem o aquecimento do mercado ao fim das restrições para a compra de dólares por pessoas físicas (que os argentinos chamam de “cepo”) e as medidas de trazer para lavar o dinheiro que não estava declarado.
O especialista Germán Gomez Picasso, arquiteto e fundador da publicação especializada “Reporte Inmobiliario” avalia que o projeto de tirar os dólares do colchão pode não ser o fator que mais impulsionará o mercado.
“A lavagem de dinheiro será um fator um pouco mais importante, mas não acho que será tanto, é preciso lembrar que no fim do ano passado houve um processo semelhante. Então, muitos dólares provavelmente já entraram no processo de lavagem de dinheiro nessa fase ou de outras, que ocorreram em governos anteriores”, diz Picasso.
Para ele, os pontos mais decisivos são os valores estarem baixos na comparação com a última década -embora estejam em tendência de alta-, o fim da lei de aluguéis -que restringia os contratos e era mais favorável a quem queria alugar, por evitar aumentos seguindo a inflação- e a evolução dos financiamentos imobiliários.
“O fim da nefasta lei dos aluguéis liberou a negociação entre as partes. Hoje, os contratos de locação têm prazos de 24 meses ou mais, até um limite de 20 anos”, diz o vice-presidente da Câmara Argentina de Propriedades Horizontais”, Armando Caputo. Segundo ele, as medidas propostas para tirar os dólares do colchão não devem causar uma explosão de vendas de imóveis na cidade de Buenos Aires, que tem propriedades mais caras do que no interior do país.
De acordo com um levantamento do “Reporte Inmobiliario”, o valor médio do metro quadrado de imóveis usados na cidade de Buenos Aires era de US$ 1.670 em maio -alta de 8% em relação ao mesmo mês do ano anterior, mas 29% abaixo do pico, em 2019.
Com a inflação mais comportada, as operações de financiamento também têm voltado ao país. Uma família que paga cerca de US$ 1.000 de aluguel e consegue um financiamento com parcelas em torno e US$ 1.500 acaba trocando a locação por um crédito imobiliário, caso seja habilitada.
Atualmente, é possível financiar até 80% do valor do imóvel, a depender da instituição financeira, mas o acesso ao crédito ainda é difícil para o assalariado médio. O percentual de vendas de imóveis com financiamento na capital foi de 21% em março -mesmo patamar de 2018; mas para comparação, há um ano era de 3%.
“A questão é que há uma escassez tão grande de moradias na Argentina, uma demanda tão expressiva por imóveis que os que conseguem financiar impulsionam o mercado, mas isso não significa que todos possam comprar uma casa com financiamento imobiliário”, diz o arquiteto.
“As propriedades seguem sendo vendidas em dólares e em dinheiro vivo, mas o crédito vai crescendo mês a mês e deve continuar assim, já que os bancos dão crédito em pesos com uma taxa de juros mais uma variável de ajuste”, diz Caputo. Ele explica que antes, os bancos davam os pesos ao comprador, mas ele precisava convertê-los em dólares para pagar ao dono do imóvel; agora, é possível vender os pesos no mercado oficial e isso isso ajuda a financiar novas operações.