BUENOS AIRES, ARGENTINA (FOLHAPRESS) – O Brasil começou a saldar uma antiga dívida com a literatura latino-americana ao publicar, ao longo dos próximos meses, obras essenciais da escritora uruguaia Cristina Peri Rossi, hoje com 83 anos e radicada em Barcelona desde a década de 1970.
Embora muitos críticos a vinculem à geração do boom latino-americano, a própria autora, em entrevista à Folha, recusa essa classificação. De fato, a escritora conviveu com nomes do movimento, como Julio Cortázar e Gabriel García Márquez, mas tanto sua prosa quanto sua poesia não podem ser encaixadas nesse rótulo.
Os livros que vão chegar agora ao país são “A Insubmissa” e “La Nave de Los Locos” este segundo ainda sem título em português, é traduzível como “o navio dos tolos”, ambos publicados pela Bazar do Tempo e traduzidos por Anita Guerra.
A jovem tradutora brasileira conta ter se apaixonado pelos primeiros livros de Peri Rossi, anteriores ao exilio, marcados pela descoberta de sua homossexualidade e pelas lembranças de sua infância numa Montevidéu muito diferente, mais provinciana, que recebia muitos imigrantes europeus e que começava a se desenhar como a agradável metrópole platense que é hoje.
Além desses dois livros, sai também a antologia poética “Nossa Vingança É o Amor”, organizada e traduzida por Ayelén Medail e Cide Piquet para a editora 34. É o primeiro lançamento brasileiro da poesia da autora, numa edição bilíngue.
Antes dessa baciada de livros, a autora só tinha uma obra editada no Brasil, a coletânea de contos “Espaços Íntimos”, hoje esgotada.
Nascida em Montevidéu em 1941, Cristina Peri Rossi é a principal voz feminina da literatura uruguaia. Seu trabalho logo chamou a atenção da repressão da ditadura, por seu caráter transgressor e por questionar o regime autoritário. Seus livros passaram a ser proibidos e a autora, perseguida.
Decidiu, então, tomar o rumo de tantos artistas da época: a Europa. Instalou-se em Barcelona e, mesmo depois da redemocratização, decidiu fixar residência na Catalunha. “Durante os anos de chumbo, meu nome estava proibido até de ser mencionado em jornais”, contou em uma entrevista.
Na Espanha, passou a publicar regularmente, ser traduzida para mais de 20 idiomas e colecionar prêmios importantes, como o Cervantes, condecoração máxima das letras hispânicas, em 2021.
Lançado originalmente em 2020, “A Insubmissa” é um romance de formação em que Peri Rossi revisita sua infância e juventude. O livro reconstrói personagens hoje distantes no tempo, como a avó e o tio, descrevendo sua fascinação pela figura de sua mãe com quem dizia, quando menina, que queria se casar.
Em breve entrevista por email à reportagem, ela fala do mundo que buscou resgatar nessa obra. “Tudo me parecia tão difícil de compreender quanto assombroso tanto na infância como agora. Só que, quando criança, eu aplicava a lógica para tentar entendê-lo. Por exemplo, se havia quatro meninas e um menino, o plural era meninos, não meninas.”
“Havia coisas enormes e inalcançáveis, como as estrelas, que eu tentava contar nas noites de verão, dividindo o céu em quadrados mas às vezes elas apareciam, outras vezes desapareciam. Acho que minha rebeldia diante das injustiças foi meu primeiro gesto de insubmissão, embora eu ainda não soubesse o significado dessa palavra. Meu primeiro gesto literário foi o assombro.”
A escritora diz que o título nasceu de uma coincidência comovente: “Um leitor artesão, que constrói embarcações com restos abandonados pelo mar, me enviou de presente uma linda escuna feita com destroços da costa de Bahía Blanca, na Argentina. Ele a chamou de La Insumisa, inspirado num poema meu. Foi um desses atos mágicos que às vezes acontecem.”
Ela conta que quis entender, por meio desse relato nostálgico, por que sua família a chamava de rebelde. “Muitas das normas sociais me pareciam arbitrárias ou ridículas. Não usar calças, não jogar futebol, não subir em árvores só porque eu era menina.”
E completa: “Hoje, minha casa inteira é decorada com embarcações, e eu não sei nadar. Minha primeira e única travessia de barco foi a do exílio. Mas o exílio também foi uma forma de insubmissão.”
O outro volume que ainda está no prelo é o romance “La Nave de los Locos”, justaposição de histórias de exílio, algumas por cidades fictícias, que tem como objetivo fazer a crítica de regimes autoritários.
Já a antologia “Nossa Vingança É o Amor” reúne mais de 150 poemas escritos de 1971 a 2024. A edição inclui seu discurso de agradecimento ao prêmio Cervantes e tem posfácio da pesquisadora argentina Ayelén Medail.
Quando questionada sobre a fidelidade poética de sua obra à infância, Peri Rossi diz que procura “ser fiel às lembranças, embora a memória seja infiel por natureza”. “Ela seleciona, oculta, engana. Não tinha outra intenção além de escrever alguns desses episódios dando-lhes um sentido, uma linha que desenhasse uma época e uma existência.”
“Se desde criança eu tinha o desejo veemente de escrever contra vento e maré num país pequeno, quase sem editoras, e nascida numa família tradicional e pobre, também sabia que precisava estudar para me sustentar. Nem minha mãe nem meu pai me apoiavam, só queriam que eu trabalhasse. Mas minha mãe era uma boa leitora, embora tenha se recusado sempre a ler meus livros.”
Depois de tantos anos do fim da ditadura uruguaia, em 1985, Peri Rossi decidiu permanecer na Espanha. Até hoje, tem horror ao autoritarismo. “Durante a ditadura militar, foram proibidas uma dúzia de palavras e vários nomes próprios. Os ditadores temem as palavras, às vezes mais do que os atos.”
Quando ganhou o Cervantes, estava doente e não pôde ir à cerimônia. Em seu lugar, subiu ao palco a atriz espanhola Cecilia Roth, que leu um discurso emocionado no qual a escritora evocava a Montevidéu da infância.
“À esquerda da minha casa morava um velho sapateiro remendão, judeu polonês, milagrosamente escapado da chacina; e à direita, um músico alemão austero, com um tapa-olho. Quando perguntei à minha mãe, professora da escola pública, laica e mista, por que o judeu e o alemão não se cumprimentavam, ela respondeu: na Europa, eles teriam se matado.”
A ligação da autora com o Brasil também atravessa décadas. Admiradora da música de Maysa e Maria Bethânia, fez traduções de Clarice Lispector para uma editora espanhola. Para ela, Clarice é “a escritora mais importante do Brasil, por ser universal e não folclórica”.
A INSUBMISSA
– Preço R$ 78 (208 págs.)
– Autoria Cristina Peri Rossi
– Editora Bazar do Tempo
– Tradução Anita Guerra Rivera
LA NAVE DE LOS LOCOS
– Autoria Cristina Peri Rossi
– Editora Bazar do Tempo
– Tradução Anita Guerra Rivera
NOSSA VINGANÇA É O AMOR: ANTOLOGIA POÉTICA (1971-2024)
– Preço R$ 98 (400 págs.)
– Autoria Cristina Peri Rossi
– Editora 34
– Tradução Ayelén Medail e Cide Piquet