SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A decisão do ministro Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal), de proibir a gravação das acareações no processo da trama golpista ignorou a previsão legal que assegura esse direito e rompeu com a lógica de publicidade observada em etapas anteriores do processo.

Especialistas ouvidos pela Folha de S.Paulo veem a medida como possivelmente inadequada ou até ilegal e inconstitucional. Enquanto parte deles fala em quebra do princípio da publicidade e possível prejuízo para as defesas, outra parcela interpreta que a decisão do ministro pode ser justificável, embora muito genérica e sem argumentação suficiente para embasá-la.

Na terça-feira (24), a corte fez no processo da tentativa de golpe duas acareações -ato no qual as partes envolvidas ficam frente a frente para o confronto de versões, em razão de informações divergentes prestadas por elas.

Na primeira, o delator e tenente-coronel Mauro Cid ficou de frente com o general Walter Braga Netto por cerca de uma hora e meia. Eles falaram sobre possível repasse de dinheiro para matar autoridades, informação dada por Cid, mas contestada pelo general.

A segunda acareação foi entre o réu Anderson Torres e Marco Antônio Freire Gomes, ex-chefe do Exército que é testemunha no processo.

A impossibilidade de gravação foi alvo da defesa de Braga Netto. José Luis Oliveira Lima, advogado do general, solicitou o registro audiovisual da audiência, mas o pedido foi negado por Moraes. O magistrado autorizou apenas uma transcrição, via ata, da acareação.

A negativa seria em razão da necessidade de “evitar pressões indevidas, inclusive por meio de vazamentos pretéritos do que seria ou não perguntado aos corréus, que poderiam comprometer a instrução processual penal”, de acordo com trecho da ata da audiência.

O advogado de Braga Netto, entretanto, viu na medida violação às defesas. Ele disse que iria abrir representação junto à OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) questionando o ato.

Para Ricardo Martins, advogado criminalista e professor de direito processual penal da Faculdade Zumbi dos Palmares, “a decisão do ministro foi arbitrária, autoritária, ilegal e inconstitucional”.

Ele afirma que a medida viola as prerrogativas dos advogados previstas no estatuto da OAB, o que poderia prejudicar a possibilidade das defesas de denunciar eventuais abusos de autoridade.

Além disso, ele diz não ser plausível a argumentação de Moraes de que gravações podem gerar pressões indevidas para as partes. Segundo o professor, a regra do processo penal é a publicidade dos atos, em consonância com o que fundamentam os artigos 5 e 93 da Constituição. Ambos falam da restrição da publicidade apenas em casos específicos, como defesa da intimidade ou interesse social.

Martins também cita o artigo 367 do Código de Processo Civil, que aborda a possibilidade de gravação em imagem e áudio das audiências. Segundo o texto, as gravações podem ser realizadas “diretamente por qualquer das partes, independentemente de autorização judicial”.

De acordo com o advogado criminalista Mário de Oliveira Filho, a regra prevista no processo civil é aplicada ao direito penal por analogia. “Ali [decisão de Moraes] foi ferido um direito garantido a qualquer cidadão envolvido no processo. Se fizer mau uso dessa gravação, mesmo sendo sigiloso, vai responder. O que não se pode é proibir de gravar, porque a lei permite. Tudo que é proibido tem que estar expresso em lei. Aquilo que não é proibido, é permitido”, afirma o criminalista.

Para ele, a medida de Moraes teve o “mesmo patamar de violência” que a decisão do STF de mandar lacrar celulares em julgamento do núcleo 2 da trama golpista, em abril. “O que são pressões indevidas? A imprensa publicar, a imprensa falar? Isso não tem fundamento nenhum.”

A professora Flávia Rahal, da FGV Direito SP, diz que a medida do ministro surpreendeu, uma vez que gravações foram permitidas em atos processuais anteriores. “A mim chamou mais atenção a mudança do rito”, diz ela.

Rahal também afirma que a acareação é a extensão do ato de interrogatório e que sua qualificação como ato da instrução do juízo, como fez o magistrado, não é argumento para afastar a possibilidade de gravação.

Para Maira Scavuzzi, advogada e professora de direito constitucional da PUC-SP, a alteração na forma de registro gera estranheza.

“Existe aí uma certa incongruência entre o modo como vinham sendo construídos os depoimentos e testemunhos e a forma como as acareações foram feitas”, afirma ela.

Scavuzzi afirma que o Código do Processo Penal dá preferência para gravações audiovisuais porque elas conseguem ser mais fidedignas, mas que o ministro trouxe uma justificativa que pode ser plausível, embora vaga.

Por isso, ela diz que a decisão do magistrado tem, em suas palavras, cheiro de irregularidade, mas diz faltar elementos para classificar a medida como ilegal.

Segundo a advogada, o ideal seria evitar o que chama de polêmicas na condução de um processo sensível que envolve um tema grave de ataque à democracia. “Se realmente houve ali um motivo muito forte para não haver a gravação, seria necessário explicar isso de forma minudente”, diz.