SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A Otan aprovou nesta quarta (25) a sua nova meta de gasto com defesa, de 5% do Produto Interno Bruto de cada um de seus 32 sócios, em uma cúpula desenhada para agradar Donald Trump, um notório cético sobre a configuração da aliança militar ocidental.
O americano retribuiu, um dia depois de colocar em dúvida seu comprometimento com o artigo 5 da carta de fundação do grupo, de 1949, que prevê a assistência mútua em caso de agressão. “Estamos com eles até o fim”, disse em Haia (Holanda), sede do evento anual.
Ao fim do encontro, ele disse que “eu saio daqui diferente”. “Sem os EUA, não vai ser a mesma coisa. Essas pessoas [os líderes europeus] realmente amam seus países, não é uma farsa. Nós estamos aqui para ajudá-los a proteger seus países”, disse ele, que sempre desprezou a Otan.
O secretário-geral da entidade, o nativo da cidade anfitriã Mark Rutte, por sua vez repetiu o ritual de subserviência da véspera, quando enviou uma elogiosa mensagem ao presidente que o americano tornou pública, dizendo que o aumento de gasto era uma vitória pessoal de Trump.
“Às vezes papai precisa usar linguagem forte”, disse, passando pano para a fala da véspera de Trump sobre a dificuldade de implementação do cessar-fogo entre Israel e Irã. “Nós basicamente temos dois países que têm lutado há tanto tempo, e tão duramente, que eles não sabem que porra estão fazendo”, disse o americano.
Em entrevista posterior, questionado se considerava as nações da Otan como “suas crianças”, o americano brincou. “Ele [Rutte] gosta de mim. Eu acho que ele gosta de mim. Se ele não gostar, eu vou te avisar, eu volto e bato bem forte nele. Ele foi muito carinhoso. ‘Papai, você é meu papai”, disse.
A declaração da reunião da Otan é uma vitória de Trump, ainda que a implementação da meta de 5% seja algo fictícia. A aliança quer o objetivo em dez anos, e fará uma revisão do andamento do processo em 2029. “Isso dará um salto quântico” nas capacidades europeias, disse Rutte, para quem “Trump merece todo o crédito” pelo avanço.
O foco, claro, é a Rússia. Desde a anexação da Crimeia em 2014, os membros do clube vem aumentando sua despesa com defesa, cuja meta de 2% do PIB era alcançada naquele por 3 de seus então 28 integrantes.
No seu primeiro mandato, Trump pressionou pelo aumento, alegando que os EUA pagavam a conta da defesa da Europa, uma verdade quando se compara o gasto militar americano (quase US$ 1 trilhão em 2024, ante US$ 442 bilhões do restante da Otan), mas impreciso pois a máquina bélica de Washington opera no mundo todo.
A realidade, com as tropas de Vladimir Putin entrando na Ucrânia em 2022, se interpôs, e hoje 23 dos agora 32 Estados da aliança já alcançam ou superam os 2% do PIB. Mas ninguém chega perto dos 5%, um gasto enorme, com a exceção da belicosa Polônia, que marcou 4,12% no ano passado.
A promessa bate, numericamente, com o número mágico que a União Europeia, espelho político da Otan, disse que iria trabalhar para gastar com defesa no bloco, US$ 860 bilhões em um prazo inespecífico de vários anos.
“A Europa vai gastar mais por causa da ameaça russa”, disse o presidente francês, Emmanuel Macron. Apenas a Espanha, a lanterninha em gasto militar do bloco, com 1,28% do PIB em 2024, se colocou contra a medida, mas não vetou a declaração.
Isso não poupou Madri de uma ameaça de Trump. “Nós vamos fazer eles pagarem o dobro”, disse, sobre a negociação tarifária com o país.
Isso dá uma medida prática do anúncio, que foi diluído por sugestão britânica com um truque: 1,5% dos 5% seria gasto em infraestrutura correlata à defesa, ou seja, qualquer coisa de hospitais a estradas.
O francês proferiu uma rara crítica a Trump no encontro. “Nós não podemos dizer que vamos gastar mais, e aí, no coração da Otan, lançar uma guerra comercial”, disse, acerca das rusgas tarifárias do republicano. “É uma aberração e é por isso que precisamos voltar para o que deveria ser uma regra entre aliados, uma paz comercial, abaixando todas as tarifas que existem”, disse.
Os EUA gastam com defesa 3,3% do PIB, mas uma enormidade dado que os EUA são a maior economia do mundo e, na prática, já dentro dos 3,5% previstos para coisas como armamentos e tropas, como o próprio Rutte disse nesta quarta.
Outro ponto em que a cúpula se dobrou a Trump foi a Ucrânia. Apesar de declarações de apoio a Kiev e elogios ao presidente Volodimir Zelenski, o tema da guerra ficou em segundo plano no encontro, dado que Trump rompeu com a política americana e europeia de suporte integral aos ucranianos e abriu as portas para negociar com Putin.
O americano se encontrou com o ucraniano em uma reunião de 50 minutos em Haia. Depois, disse que ia examinar a possibilidade enviar mais ajuda militar à Ucrânia, como mísseis do sistema antiaéreo Patriot, mas sem se comprometer.
Disse de forma ligeira também que “é possível” que Putin tenha pretensões terri toriais além da Ucrânia, uma obsessão europeia, mas depois insistiu que o russo quer acabar com o conflito. “É uma confusão para ele”, afirmou. Trump disse que vai “falar com Putin para encerrar a guerra”.
Voltando aos gastos, a medida é uma adaptação da Europa à nova realidade. A Otan, que o mesmo Macron disse estar em “morte cerebral” em 2019, se reinventou com a agressão russa a Kiev, retomando a função primordial de buscar conter Moscou.
Para isso, precisa de dinheiro: Putin já emprega 7% do PIB russo em defesa, mais que todos os países europeus juntos, e sua produção de armamentos supera a do continente. Agora, contratos e encomendas começam a abundar, para a alegria da indústria de defesa continental e também de Trump.
Uma das medidas anunciadas na cúpula, por exemplo, foi a compra de 12 caças de quinta geração americanos F-35A pelo Reino Unido. Eles já são certificados para lançar bombas nucleares táticas na Força Aérea da Holanda, e agora Londres vai voltar a ter essa capacidade após 30 anos os britânicos operam mísseis nucleares próprios em quatro submarinos.
Tudo isso visa, segundo os planos da Otan, um conflito direto com o Kremlin, que os estrategistas consideram inevitável até 2030. Putin diz que isso é bobagem, uma desculpa para aumentar o lucro da indústria da defesa, que viu suas ações subirem quase 50% em um ano na Europa.
Ao mesmo tempo, as ações russas e os planos de seu Ministério da Defesa incluem o mesmo prazo para ter prontidão militar e enfrentar a Otan. Os cenários são convencionais, mas são dois rivais nucleares, o que sugere que qualquer guerra pode levar ao fim ao apocalipse atômico.
Em 1962, a americana Barbara Tuchman publicou um livro seminal, “Os canhões de agosto”, no qual contava como a teia de alianças militares e desconfianças mútuas colocou em marcha, de forma inevitável, a Primeira Guerra Mundial.
Na crise dos mísseis de Cuba, no ano seguinte, o presidente John Kennedy citou a leitura da obra enquanto o mundo quase via um confronto atômico. Sessenta e três anos depois, o livro parece ter saído de moda em Washington, Bruxelas e Moscou.