SÃO PAULO, SP, E RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – Era 2018. Aos sábados à noite, Lady Kate, Janete, Valéria e sua trupe do “Zorra Total” faziam do riso o maior protagonista da Globo. Aos domingos à tarde, era a vez da “Escolinha do Professor Raimundo”, um remake do programa criado por Chico Anysio, seguido por “Choque de Cultura” e pela série “Pais de Primeira”, sobre um casal às voltas com seu primeiro filho. Seis anos e meio se passaram, e o que restou é uma reprise da “Escolinha” aos sábados à tarde, faixa que as afiliadas regionais da emissora ocupam com seus próprios shows de variedades.

O esvaziamento do humor na grade de programação do maior canal do país expõe o apagão que esse gênero enfrenta no Brasil, principalmente na televisão aberta.

A virada, segundo humoristas e executivos, teria ocorrido no momento em que os debates entre a direita e a esquerda, especialmente em temas comportamentais, culturais e religiosos, se acirraram no país –desde a crise que levou ao impeachment de Dilma Rousseff, alvo frequente do “Zorra Total”, retratada como condutora de um metrô desgovernado, mas sobretudo a partir da eleição de Jair Bolsonaro, que fez da classe artística e da própria Globo um de seus maiores alvos.

O apagão, que ainda teve influência da paralisação de produções na pandemia e da saída conturbada do humorista Marcius Melhem e de parte de sua equipe da Globo, vai além da emissora e atinge os comediantes em projetos independentes.

Um reflexo disso é a condenação de Leo Lins à prisão, no início do mês, por exibir no YouTube um show com piadas consideradas preconceituosas pela Justiça. Embora a sentença possa ser um caso isolado, nos bastidores ela é vista como um precedente raro sobre o limite da liberdade de expressão na arte.

O esvaziamento ainda atinge o SBT, de onde Leo Lins foi demitido há três anos, depois de fazer uma piada com uma criança com hidrocefalia, mas aparece pontualmente, em quadros do The Noite. No humor, a segunda maior emissora do país sobrevive do talk show de Danilo Gentili, de reprises de “Chaves” e “Chapolin”, da bancada do Programa do Ratinho e da longeva atração de Carlos Alberto de Nóbrega, “A Praça É Nossa”.

Mas o programa de Carlos Alberto, exibido às quintas num horário inalcançável para grande parte do público, quase à meia-noite, perdeu as figuras mais fortes responsáveis por sua renovação, no início da última década, como Matheus Ceará, que hoje se dedica à internet.

A polarização, que se manteve depois do retorno de Lula ao Palácio da Alvorada, segue afastando investimentos para esse tipo de produção. É o que afirmam especialistas ouvidos pela reportagem, quase todos sob a condição de anonimato imposta por cláusulas de confidencialidade nos contratos de trabalho.

De um lado, artistas que se manifestam contra a pauta conservadora, popularizada por Bolsonaro, ainda são vistos como inimigos da nação por aquela parte do público mais alinhada à direita. De outro, qualquer riso à custa de grupos que fazem parte das chamadas minorias sociais –como pretos, pardos, indígenas e a comunidade LGBTQIA+–, mais alinhadas a Lula, é condenado pela esquerda. O resultado, em ambos os casos, é o cancelamento.

Mas o temor não se limita à reação do público. No momento em que fechou as cortinas para o riso, a Globo, por exemplo, buscava evitar desgastes com Bolsonaro além daquele que seria inevitável –no jornalismo–, com medo de afastar o público que se posicionava a favor do governo.

Com receio de serem prejudicadas por terem sua imagem colada a piadas controversas, as marcas também passaram a ver o humor com desconfiança. É um investimento que a Globo tenta retomar, a exemplo de uma brincadeira que promoveu com Tata Werneck e Eduardo Sterblitch para empresários e marqueteiros em outubro passado.

Durante o evento em que apresenta as produções do canal previstas para o ano seguinte, a dupla distribuiu brigadeiros aos convidados para mostrar, em suas palavras, que os comediantes não vão pôr os negócios em risco e são “do bem”.

A Globo recriou um núcleo de humor –“do bem”– há dois anos. Seu maior sucesso é a série “Pablo e Luisão”, de Paulo Vieira, que mostra episódios marcantes da vida do pai de seu criador ao lado do melhor amigo, entre a comédia e a tragédia impostas pela pobreza. É a obra mais vista da plataforma de streaming Globoplay já há quase um mês.

Vieira não quis dar entrevista, mas seu sucesso é interpretado por pessoas envolvidas na produção como o resultado de um humor capaz de manter a graça sem ofender ninguém ao tratar de temas delicados como a pobreza.

Outro exemplo é o episódio em que o pai e o amigo decidem criar uma dupla sertaneja. A empresária deles carrega muitos dos estereótipos associados a uma mulher lésbica, mas essas características não são alvo de chacota.

A diretora do núcleo de humor na Globo, Patricia Pedrosa, também não quis conversar com a reportagem, mas a emissora afirma que, na mesma esteira de “Pablo e Luisão”, há cerca de 40 projetos em desenvolvimento para suas plataformas –o próximo é “Aberto ao Público”, um show de stand-up em quatro episódios previsto para julho.

Pedrosa já promoveu ao menos três encontros com mais de uma centena de novos talentos, à procura de ampliar sua produção. Mas o que se vê nas telas é embrionário ante a programação robusta que existia antes.

Até meados da década passada, quase todos os dias havia um humorístico no ar, dos esquetes de “TV Pirata”, “Casseta & Planeta” e “Zorra Total” –herdeiros de um estilo de humor radiofônico, cheio de bordões, cultivado no imaginário nacional com Jô Soares, Chico Anysio e Os Trapalhões– até as séries cômicas como “A Grande Família”, “Os Normais” e “Tapas & Beijos”, além dos shows gravados em teatros, como “Toma Lá Dá Cá”, sucessor de “Sai de Baixo”.

Uma evidência disso é que, entre os humoristas contratados da emissora, quase nenhum produz humor. Welder Rodrigues, que estreou no “Zorra Total” –no qual fez sucesso como Jajá, do bordão “tô doido, tô doido”–, passa a maior parte do ano fazendo novelas, como “Mar do Sertão” e “No Rancho Fundo”. Sterblitch, importado pela Globo depois de anos no politicamente incorreto Pânico na TV, também é mais visto nos folhetins desde 2019. Participou de “Salve-se Quem Puder” e está no ar em “Garota do Momento”.

Fábio Porchat, talento descoberto no teatro e que deslanchou no “Zorra Total”, só faz humor fora da televisão. Na Globo, o talk show Que História É Essa, Porchat? pode ter momentos engraçados, mas é um programa de entrevistas, que inclusive tem trechos mais dramáticos. A exceção é o Lady Night, outro talk show, mas que ao menos tem os convidados como escada constante para as piadas feitas por Tata Werneck.

Além disso, esses são programas feitos para os canais pagos da Globo e chegam à televisão aberta só meses depois, caso do Lady Night, que demanda uma revisão cuidadosa de Tata Werneck e sua equipe numa série de cortes.

“Pablo e Luisão”, assim como a série “Encantado’s”, também tem a TV Globo como segunda janela de exibição. Para os milhões de espectadores que nem acesso à internet têm, o seriado de Paulo Vieira, visto nos bastidores como uma luz em meio a esse apagão do humor, nem sequer tem previsão de estreia no canal aberto. Tampouco há sinal verde da emissora para a produção de uma segunda temporada.

Sem um espaço próprio no principal canal aberto, o humor está relegado a participações noutros programas, principalmente os de auditório, como o Domingão com Huck, que hoje tem um elenco improvável de comediantes.

Déa Lúcia –mãe de Paulo Gustavo–, Rafael Portugal, Ed Gama e Lívia Andrade são, em tese, comentaristas e participantes dos quadros. Mas na prática o time anima a atração a partir de seus arquétipos –a idosa desbocada, o malandro mané, o imitador e a mulher que, aos olhos do público, tem a beleza como seu principal atributo.

Nos bastidores, essa limitação constante às plataformas de menor audiência da Globo é vista como um sinal de que a emissora não superou o medo de fazer humor. Um dos poucos profissionais consultados que aceitou dar entrevista sem anonimato, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, diz acreditar que o cenário não deve mudar, e a condenação recente de Leo Lins pode impor ainda mais receio.

“Eu achava que esse era um medo infundado das emissoras brasileiras, porque nos Estados Unidos o humor continua forte. O ‘Saturday Night Live’ segue no ar martelando Donald Trump. Mas estou mudando a minha opinião”, afirma.

“Agora está de fato muito difícil, por causa do lamentável politicamente correto. Nunca vi o espetáculo de Leo Lins, mas não importa o que seja. Ninguém pode ser preso por fazer rir. Os canais brasileiros têm medo de ser processados, pagar multas e, agora, até de ter seus contratados presos.”

Diretor da Globo por 30 anos, de 1967 a 1997, Boni se lembra dos tempos em que perdia horas de trabalho para negociar com os censores e afirma que o cenário atual não parece diferente.

“A censura militar talvez tenha sido mais branda do que aquilo que acontece hoje, porque existia o foco no jornalismo, mas Chico Anysio, Jô Soares e Renato Aragão brilharam nessa época. Antes disso, no Estado Novo de Getúlio Vargas, havia programas no rádio, como o Lauro Borges & Castro Barbosa. Lauro ia trabalhar com uma malinha, porque já sabia que seria preso, mas ele dormia uma noite na cadeia e era solto no dia seguinte, porque não havia fundamento para manter a prisão –como não há hoje. Mas regredimos.”

A avaliação de Boni sobre a diferença entre a liberdade de expressão em cada país encontra amparo em pesquisas. Nos Estados Unidos, a professora de direito Laura Little, da Universidade Temple, na Filadélfia, revisou centenas de decisões judiciais e chegou à conclusão de que, nas últimas décadas, os tribunais têm sido favoráveis ao humor, principalmente às sátiras e paródias.

Já no Brasil um estudo do InternetLab, um centro de pesquisas de direito e tecnologia, mostrou que os juízes têm se posicionado contra o riso. Às vésperas das eleições de 2018, a pesquisa mostrou que, na primeira instância, oito em cada dez ações tiveram sentenças contra publicações humorísticas, número que tem uma queda de 10% na segunda instância. Os políticos encontraram menos proteção no Judiciário, mas ainda garantiram indenizações em metade dos casos analisados.

Ainda que o politicamente correto esteja no centro do debate por causa da condenação de Leo Lins, há casos recentes em que conservadores levaram comediantes à Justiça. O maior exemplo é o especial de Natal do Porta dos Fundos feito com a Netflix em 2019, “A Primeira Tentação de Cristo”. A história, que mostrava uma versão gay de Jesus, levou a um ataque com bombas à sede do grupo de humoristas no Rio de Janeiro e a uma série de processos.

O resultado disso é que, hoje, enquanto nos Estados Unidos o serviço de streaming produz obras como um show de stand-up em que Dave Chappelle zomba de transexuais, pessoas com deficiência e crianças com câncer, no Brasil os lançamentos de humor são filmes de comédia inofensivos, muitas vezes voltados a crianças e famílias, protagonizados por Luccas Neto e Leandro Hassum.

Hassum é o mais bem-sucedido entre os humoristas que recorreram à internet depois que a TV fechou as portas. Ele faz parte de uma longa lista, composta sobretudo por profissionais alinhados à direita. O maior exemplo é o elenco principal do Pânico, encerrado em 2017. Márvio Lúcio e Marcos Chiesa, o Carioca e o Bola, por exemplo, hoje têm maior projeção como anfitriões do podcast Ticaracaticast.

As redes sociais se mostraram frutíferas para esses humoristas. Embora o cenário de total liberdade encontrado online possa mudar depois que o Supremo Tribunal Federal concluir a votação agora em curso sobre o Marco Civil da Internet, hoje as plataformas digitais não se responsabilizam pelo conteúdo dos usuários e, portanto, são menos vulneráveis a processos, algo que assusta canais tradicionais como a Globo.

Os algoritmos dessas plataformas também agem em prol da formação de bolhas. Dessa forma, o humor politicamente incorreto tende a ser visto apenas por pessoas que concordam com essa abordagem e vice-versa.

Raony Phillips, um humorista surgido das redes sociais, sabe bem disso. Há cerca de uma década, ele vinha atingindo o público queer com a série “Girls in the House”, feita para o YouTube, usando os bonecos e os cenários do jogo “The Sims”. Com episódios de até 40 minutos, ela mostra três amigas que vivem numa pensão entre situações absurdas. São vídeos de um minuto, com esquetes roteirizados por Raony e animações hiper-realistas feitas a partir de inteligência artificial, que simulam um programa de auditório de uma apresentadora que veste apenas um maiô e tem interações improváveis com entrevistados, plateia e repórteres, em geral sátiras à grade matinal e vespertina da TV.

“Amo minha melhor amiga”, diz uma convidada. “É mesmo? Nós trouxemos você aqui para mostrar as mensagens que você tem mandado para o marido dela”, responde Marisa. Próxima piada.

O programa, criado há poucas semanas, já atingiu milhões de visualizações e conquistou anúncios de empresas como o Magazine Luiza. É engraçado, mas nenhuma piada carrega qualquer tipo de ofensa. “Eu sou da ideia de que precisamos rir juntos, desde que a gente não esteja rindo do outro. É uma responsabilidade que você precisa ter quando fala com muitas pessoas”, diz Raony.

Seu projeto lembra o humor de Paulo Gustavo, morto na pandemia. A franquia “Minha Mãe É uma Peça” explodiu nos cinemas se esquivando de ofensas, agradando tanto à esquerda quanto à direita, mesmo quando mostrava dramas como o de um casal gay que tem seu casamento no clímax do último filme da trilogia, que é o segundo filme brasileiro de maior bilheteria da história.

Esse tipo de vídeo curto tem seu ápice no Kwai, um aplicativo parecido com o TikTok, que diz já ter investido R$ 7 bilhões no país, um de seus principais mercados, recheado de perfis que encenam pequenos dramas e piadas sem grandes retoques ou preocupação com cenários e roteiros. Um terço do que os usuários dessa rede consome por dia são conteúdos humorísticos, segundo Claudine Bayma, diretora-geral do Kwai.

Outro destaque na internet é a trupe Embrulha pra Viagem, que ainda roda o país em shows de stand-up e conseguiu se sair bem no filão dos vídeos curtos com historinhas de humor com desenlaces não raro moralizantes.

Mas o humor feito na internet também enfrenta dificuldades. Se em seu auge, em 2013, o Porta dos Fundos tinha 60 milhões de visualizações por mês no YouTube, segundo o Google, hoje esse número caiu para 38 milhões, de acordo com o Social Blade, plataforma de monitoramento de redes sociais.

Mas uma das razões para essa crise vai além da esfera política, diz Cláudio Torres Gonzaga, roteirista que trabalhou na Globo nos anos 2000, em programas como o “Zorra Total”, e criou aquele que é considerado o primeiro grupo de stand-up do Brasil, o Comédia em Pé

“Acabaram com o humor popular na TV, com os bordões, sem consultar o público. Queriam fazer algo mais sofisticado. Eram bons produtos, mas descolados do público”, diz Torres, lembrando a renovação de programas como o “Zorra”, que substituiu os chavões por esquetes cotidianos, sem muito sucesso. “O brasileiro gosta de ser o engraçado da turma, e o bordão ajudava, porque era só repetir o que via na TV.”

O desgaste nos formatos também é apontado como um problema por executivos da Netflix que preferem não ser identificados. Depois de contratar todos os maiores humoristas em atividade no Brasil para fazerem shows de stand-up para sua plataforma, eles dizem ter dificuldade para encontrar conteúdos relevantes de comédia.

A maioria das sitcoms e dos filmes de comédia brasileiros, acrescentam esses profissionais, não tem uma dramaturgia consistente –personagens e conflitos com início, meio e fim– e são colagens de piadas, uma estrutura que não costuma funcionar para o streaming, que tem por objetivo estimular os assinantes a fazerem longas maratonas. Quando o humor é forçado, dizem, o público logo perde o fôlego –as luzes se apagam e, por último, ninguém ri.