SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Leci Brandão tem um sonho: produzir um disco com mulheres cantando suas músicas. “Eu acho que vai ser uma coisa legal.”

Seria um novo capítulo de uma longa trajetória na música, na TV, onde trabalhou como comentarista no Carnaval, e na política –nascida no Rio de Janeiro, a cantora está em seu quarto mandato como deputada estadual pelo PCdoB em São Paulo, onde vive desde os anos 1980.

“Você vê que eu estou falando com você e tem hora que eu fico gaga, né? Porque é muita coisa.”

A cantora de 80 anos é retratada em “Leci”, que estreia neste domingo (15) no Festival In-Edit Brasil, dedicado ao documentário musical. Dirigido por Anderson Lima, o trabalho mostra a carreira da artista, com dezenas de depoimentos de personagens da música e da política.

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PERGUNTA – [O produtor] Moisés da Rocha chama seu trabalho de samba social. Mas a sra. começou a fazer samba depois de uma desilusão amorosa. Como a sra. percorreu esse caminho do sentimento para o samba social?

LECI BRANDÃO – Eu não sabia que era compositora. Sou intuitiva, não toco instrumento nenhum, não sei como a música pinta na minha cabeça. Costumo dizer que é coisa de Deus e de orixá.

A arte mesmo aconteceu por causa de uma saudade. Daí comecei a ver as coisas e pintava música. Do nada. Podia estar passando um café e vir uma música. Podia estar dentro do trem, e a música pintava.

P – A sra. saiu da gravadora PolyGram porque acharam que a temática da sua música estava politizada demais. Esse tipo de problema ainda existe na música?

LB – Acredito que sim. Tem tanta coisa legal que a gente fez que eu nunca ouvi nenhuma rádio tocar. Claro que, dependendo do lugar que você frequente, das pessoas que conheça ao longo da vida, você vai abrindo a sua cabeça. Não sou uma pessoa que tenha tido formação acadêmica. Vejo as coisas, vem a emoção, eu sinto, escrevo. Confesso a você que, depois que entrei nessa coisa de parlamento, diminuiu bastante a minha inspiração.

P – Há uma cena no documentário em que a sra. está discursando para uma Assembleia vazia. Qual é a percepção sobre o trabalho como deputada?

LB – A Assembleia vazia não me importava, porque acho que o poder da palavra, quando você está falando uma coisa de verdade, do teu coração, é importante você falar. É independente de se a plateia está cheia ou vazia. O fundamental é que você fale o que você acredita e que seja uma coisa que vá dar progresso para alguém.

P – Acredita que o samba ainda esteja nessa vanguarda de crítica social?

LB – Acho que [é] a turma do hip-hop. Dessa coisa de rap, esses meninos que chegaram depois. O que eles falam, para mim, é o grande lance que pintou nos últimos anos. Falam da realidade deles, da vida deles, da favela, do morro, da dificuldade que enfrentam para resolver qualquer coisa. É o povo pobre, preto, da periferia, essa gente começou a falar de outra forma.

P – Quando a sra. chegou à Mangueira, lhe foi pedido que fizesse um estágio antes. O samba ainda é machista?

LB – Os caras ficaram assustados. Diziam: “o que essa menina veio fazer aqui”? Quando cheguei à Mangueira eu já era compositora. Então houve uma decisão: vamos fazer um estágio. Comecei a fazer sambas de quadra. E acharam que era interessante.

Mas talvez tido a questão da minha cabeça maluca…Teve um enredo que tinha que elogiar a Petrobras, Fiz uma letra que falava alguma coisa que o petróleo estava sumindo. Aí os caras falaram, não, esse seu não pode ganhar. Fiquei bem chateada na época. O povo vinha: “Leci continua querendo observar coisas que não são necessárias”. Mas para mim era necessário.

P – A sra. já contou que teve uma percepção do racismo muito cedo, quando num concurso escolar acabou não levando o prêmio.

LB – Eu era filha da servente, morava na escola Equador, lá em Vila Isabel. A minha redação não ganhou e eu sabia que tinha sido a melhor, aí não recebi a medalha. A minha professora fez uma solenidade pequena na sala de aula e me deu uma medalha.

P – Como evoluiu sua percepção sobre o racismo?

LB – Quando entrei para o colégio Pedro 2o, escutava na minha turma um negócio assim: “Tiziu, Tiziu, Tiziu”. E eu não sabia que era isso. Aí uma amiga falou: “Leci, isso é com você”. Tiziu é um passarinho preto e o pessoal fica gritando “tiziu” porque eu era a única pretinha. Depois acabei fazendo uma música: “Apelido Tiziu”.

Outro exemplo: quando morava em Realengo e fui procurar emprego. Passava nas provas e era reprovada no psicotécnico. Era isso, eu era uma garota preta. Existia nessa época nos classificados: precisa-se de moça de boa aparência. Eu achava que moça de boa aparência era ir arrumada, com roupa direitinha, limpa. E chegava nos lugares, a cor da minha pele é que me reprovava, e não percebia isso. Até que uma amiga disse: meu irmão sabe que vai ter uma vaga na firma em que trabalha. Fui lá, fiz a prova, passei e fui admitida. Ali a cor da pele não atrapalhou.

P – A sra. já deve ter visto uma entrevista em que o Jô Soares pergunta ao Zeca Pagodinho qual a diferença entre o samba e o pagode, e o Zeca dá uma resposta que não responde muito. Queria fazer a mesma pergunta para a sra.

LB – As pessoas faziam música, mas a mulher era retratada de qualquer maneira. O grande lance do pagode foi que eles começaram a cantar música de amor para as mulheres. Ou seja, a mulher começou a ficar mais valorizada, sabe? Lembra que nessa época tinha muita música “meu benzinho”, “meu amorzinho”? Isso fez com que a mulher se sentisse mais desejada, mais amada. Vejo por aí. Você lembra quando o Almir [Guineto] gravou “aquela boca sem dente que eu beijava”? Era desse jeito. Aí a moçada chegou, o Raça Negra, que foi o responsável por essa coisa do pagode. O menino, o Luiz Carlos, fazia música de amor, tudo com muita ternura. Para as mulheres. E isso foi tomando impulso.

P – Isso influenciou o samba de volta?

LB – O samba não muda. Um dia, o Bira, do Fundo de Quintal, falou assim: “para de falar negócio de política, você tem que mudar um pouco para aparecer mais”. Eu achei legal, mas continuei minha missão de fazer música social.

P – Que impacto esse crescimento do Carnaval de rua vai ter sobre o samba?

LB – O Carnaval mudou muito. Você me lembrou agora um samba que fiz chamado “Apenas um Bloco de Sujo”: “O pessoal lá do morro resolveu formar um bloco de sujo pra sambar, porque a escola de samba enriqueceu, e a gente nossa já não tem lugar.” Isso foi tomando um vulto que, de repente, blocos também começaram, aqui em São Paulo, a se destacar.

O desfile das escolas antigamente tinha bastante gente preta. Depois foi clareando. Porque as pessoas começaram a perceber que não era ruim desfilar. Aí acontece o seguinte: rainha da bateria, tiraram as meninas da periferia, da favela, que sabiam sambar, pretas e bonitas, e substituíram por famosas. Começou esse negócio de celebridade ser rainha, e você acabou não vendo mais as meninas que eram escolhidas pelos ritmistas na comunidade.

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LECI

Onde In-Edit Brasil: Dom. (15), às 16h, na Cinemateca; qua. (18), às 15h, no Cinesesc; dom. (22), às 18h30, Spcine Olido, às 13h nas salas CEUs e às 16h no CFC Cidade Tiradentes

Preço Sessões gratuitas ou com entrada a R$ 10

Produção Brasil, 2025

Direção Anderson Lima

Link https://br.in-edit.org/