SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Maiores empregadores formais do país, os supermercados, que hoje possuem uma rotatividade de quase 60% da sua força de trabalho, fazem campanha junto ao Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) contra o consignado CLT por temerem que o produto agrave o atual apagão de mão de obra vivido pelo setor.

O receio é que a dívida, que é descontada em folha de pagamento e pode comprometer até 35% da renda do trabalhador, seja um estímulo a mais para que os funcionários peçam demissão de seus empregos e migrem para a informalidade para não arcar com as parcelas.

Dados do Caged (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados) levantados pela equipe de dados e investigação DeltaFolha mostram que, entre janeiro e abril, 59% dos desligamentos de trabalhadores em hipermercados foram a pedido do trabalhador.

É um percentual bem maior do que os 42% registrados no período há cinco anos —esse movimento de alta da rotatividade está relacionado à forte queda da taxa de desemprego, que está nas mínimas históricas, e no interesse cada vez maior dos jovens pelo empreendedorismo.

Os supermercadistas temem que o consignado CLT agrave o problema nos próximos meses.

Lançado em 21 de março pelo Ministério do Trabalho e Emprego, o programa prevê o uso de 10% do FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço) e das verbas rescisórias como garantia de pagamento. O objetivo é ampliar o acesso a crédito e reduzir juros a empregados no setor privado através da competição em leilão por esse crédito.

Mas os grandes bancos privados ainda não entraram em peso no consignado CLT, e as instituições financeiras menores, cautelosas pela alta rotatividade do trabalho em setores intensivos em mão de obra, oferecem taxas consideradas altas para um crédito com garantia, como o consignado.

Mesmo antes do consignado CLT ser lançado, o saldo do empréstimo com desconto em folha para o setor privado, que é a modalidade antiga, já vinha subindo, e chegou a alcançar quase 10% entre fevereiro e março.

Em reunião ocorrida no final de maio com o ministro do Trabalho, Luiz Marinho, a Abras apresentou levantamento mostrando que 20.734 funcionários de supermercados tomaram consignado CLT a juros médios de 6,98% ao mês, ou 124,7% ao ano.

Apesar da garantia do desconto em folha, diz a entidade, foram fechados contratos a taxas tão altas quanto 21,88% ao mês, ou 974,4% ao ano. Dados do Banco Central de abril, que mostram a média do mercado, apontam que os juros do consignado privado subiram a 59,1% ao ano no mês retrasado, acima do crédito pessoal, de 49,5% ao ano.

Para a Abras, os juros altos e a possibilidade de comprometimento de até 35% da renda acabam estrangulando o orçamento familiar dos trabalhadores. “Isso pode levar muitos a recorrerem a demissões voluntárias em busca de alternativas financeiras, elevando o turnover”, afirmou a entidade em nota.

O setor, que calcula possuir 355 mil vagas abertas sem conseguir preenchê-las, fez uma parceria com o Exército para contratar egressos, amenizando a escassez de mão de obra.

“O produto Crédito do Trabalhador é bom, a ideia é boa. Nossa preocupação é que a taxa tem ficado muito alta, e isso pode gerar vários problemas”, afirma Victor Pinelli, sócio da Ártico Capital, empresa de soluções financeiras que atua como conselheiro da Abras e que participou do encontro.

Durante a reunião, os supermercadistas sugeriram ao governo que o percentual de crédito que pode ser tomado pelos trabalhadores seja proporcional ao salário. “Se não, o que sobrar do salário não vai ser suficiente para viver”, diz Pinelli.

As críticas foram feitas também ao vice-presidente da República, Geraldo Alckmin, que durante evento em maio ouviu queixas do setor ao programa: em discurso, o presidente da Abras, João Galassi, disse que o crédito consignado está “endividando trabalhadores”, o que levará a uma “crise”.

O empréstimo consignado CLT preocupa também a Cebrasse (Central Brasileira do Setor de Serviços), que reúne mais de 80 entidades setoriais.

“Quando o trabalhador compromete uma parcela significativa da sua renda com dívidas de longo prazo, ele perde a capacidade de honrar despesas básicas, gerando estresse financeiro e até mesmo situações extremas, como a decisão de pedir demissão apenas para se livrar dos descontos automáticos”, afirma João Diniz, presidente da central.

Inês Restier, diretora financeira da ABRH-SP (Associação Brasileira de Recursos Humanos), avalia que o problema existe, e acredita que deve ser combatido com mais informação financeira das empresas aos trabalhadores.

“Os funcionários não conseguem cumprir as obrigações com bets e entram no consignado para cobrir”, diz Restier, que afirma que cresceram os relatos de RHs de funcionários que processam as empresas para não pagar o consignado, e que isso pode gerar um problema ainda maior lá na frente. “Há um risco altíssimo nisso, porque quem processa e perde paga as custas do processo”, lembra a especialista.

O advogado trabalhista Ivan Nogueira Lima, do escritório Demarest, aponta que há outros descontos em folha que ajudam a reduzir o salário, como vale-refeição e descontos de co-participação de planos de saúde.

“Os trabalhadores possuem outros tipos de desconto, como de academia, refeitório, vale-refeição, vale-transporte, etc. Na hora em que coloca tudo isso mais o consignado, o valor a ser pago pode ser muito reduzido.”

O MTE avalia que o programa permite crédito barato a quem nunca teve acesso a ele, como empregados domésticos, e aponta que as taxas de juros, apesar de ainda altas em abril, já se reduziram em maio e continuarão em queda.

Procurada pela reportagem, a pasta afirmou que, pelas regras do programa, o trabalhador pode comprometer no máximo 35% da renda com o consignado e que não pode ter outro empréstimo.

“Portanto, [o MTE] não vê como o consignado pode endividar o trabalhador. O consignado é exatamente para o trabalhador sair de situações de endividamento, de estar pagando juros altos de cartão de crédito, ou fazer um empréstimo CDC [Crédito Direto ao Consumidor] que paga mais de 8% de juros ao mês.”

De acordo com o MTE, dados do BC mostram que a concessão do cartão de crédito rotativo teve queda de quase R$ 3 bilhões em abril, mesmo patamar das concessões do crédito consignado no mês, o que indica migração de uma dívida mais cara por outra barata. Dados da pasta também mostram que, dos 2,3 milhões de tomadores do consignado CLT até agora, 3.800 são empregados domésticos.

“O novo consignado está sendo utilizado, de fato, para migrar dívidas caras, conforme o objetivo do programa”, diz a pasta.

O ministério afirma ainda que a taxa do consignado CLT já se reduziu em maio, a 47,2% ao mês, segundo os dados da Dataprev, empresa de tecnologia do governo federal.