SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O compartilhamento de jatinhos, helicópteros e iates tornou-se popular entre os super-ricos no Brasil na última década. Nesta modalidade, um grupo de milionários com o desejo comum de economizar compra um item de luxo de forma fracionada, amenizando os custos de aquisição e manutenção.
Uma das líderes do mercado, a Avantto, que atraiu parte da elite brasileira oferecendo cotas de aeronaves com preços competitivos, passou a ser alvo da Receita Federal sob a suspeita de importação irregular de bens por meio de um suposto esquema montado para driblar o pagamento de tributos.
Em fiscalização realizada entre 2021 e 2023, seis aeronaves tiveram a pena de perdimento decretada, que é a decisão mais grave em um processo de fiscalização. Segundo a Receita, quando um bem sofre pena de perdimento, ele passa a pertencer à União, podendo ser leiloado, doado para ações sociais, incorporado a órgãos públicos ou destruído.
Procurada pela reportagem, a empresa diz que as seis aeronaves continuam operando normalmente porque ainda cabe recurso, e o caso está sendo discutido no Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais). A empresa diz também que tem decisões judiciais favoráveis, nega irregularidades e afirma que todos os tributos foram recolhidos. (leia mais abaixo).
Conforme documentos obtidos pela reportagem, entre as pessoas físicas e jurídicas listadas pela Receita como usuárias das aeronaves aparecem a Neymar Sport e Marketing -ligada ao jogador de futebol-, o empresário Meyer Nigri, presidente do conselho de administração da Tecnisa, e o banqueiro Ricardo Villela Marino, herdeiro da Itaúsa. Também estão na lista a farmacêutica Biolab e uma empresa ligada ao banco Santander, entre outros nomes.
Relatórios da Receita obtidos pela reportagem sustentam que o ponto central do suposto esquema está na utilização de uma cooperativa de fachada, a Voar, criada com o objetivo de obter vantagens indevidas, simulando contratos e transações para evitar o pagamento integral de tributos.
Um dos indícios apontados pela Receita de que a Voar seria um subterfúgio usado pela Avantto é a própria sede da cooperativa, no centro de Belo Horizonte. Nas diligências realizadas, os fiscais encontraram apenas uma sala fechada, sem ninguém que respondesse pelos cooperados.
A cooperativa não possui funcionários contratados e todas as operações foram realizadas pela Avantto, incluindo a importação de aeronaves, o pagamento e o recebimento de valores, o que, para a Receita, seria uma forma de ocultar os verdadeiros proprietários dos jatos e helicópteros.
“Ora, a Avantto possui o controle da Voar Cooperativa, ela administra as aeronaves e contrata os diversos serviços junto aos fornecedores. A relação desses fornecedores é com a Avantto e não com a cooperativa”, diz o relatório.
Os fiscais também ressaltam uma confusão feita pelos responsáveis, que revela a simbiose entre cooperativa e empresa.
“Em ato falho, a Avantto, quando intimada (doc 7.51) a apresentar seus extratos bancários, apresentou (doc 7.52) os extratos da Voar Cooperativa, tal situação denota cabalmente a unidade de comando, como as entidades se confundem, característica marcante de um grupo econômico”, diz o documento.
Nos relatórios, os fiscais questionam os argumentos utilizados por Avantto e Voar para explicar a relação entre elas. “Que empresa no mundo real ‘terceiriza’ os seus serviços, concedendo, inclusive, plenos poderes para movimentar a sua conta bancária?”
O interesse da Avantto em manter a cooperativa, ainda segundo avaliação da Receita, era a possibilidade de usá-la na importação de aeronaves para ocultar os verdadeiros interessados na importação, como ela própria. Essa interposição (nome técnico) é considerada fraudulenta.
Outra irregularidade apontada nos relatórios está na utilização indevida do modelo de importação temporária, que foi prorrogado, em alguns casos, por uma década.
Ainda segundo a Receita, o esquema criado entre a Avantto e a Voar foi espelhado de outro grupo, mais antigo, formado também por uma cooperativa, chamada Cooperfly, e a empresa Helisolutions, uma das pioneiras no serviço de compartilhamento de aeronaves no Brasil, que exercia papel semelhante ao que foi assumido pela Avantto.
Constituída em 2000 e liquidada em 2011, a Cooperfly também servira para importar os veículos usando o regime de admissão temporária, enquanto a Helisolutions geria o grupo e captava os clientes para serem cooperados.
O arranjo das marcas antigas foi desfeito, segundo a Receita, para criar um novo grupo com a Avantto e a Voar, após a retirada de um dos sócios, que vinha enfrentando problemas na Justiça do Trabalho, com bloqueio de contas e risco de penhora de aviões ou helicópteros.
A transição desencadeou o que a Receita chamou de debandada dos cooperados, quando eles foram transferidos da Cooperfly para a Voar. A passagem de 79 cooperados foi feita por meio de transação realizada pela própria cooperativa em nome dos cotistas. Muitos cooperados, porém, não se submeteram ao procedimento.
De acordo com a Receita, embora existam outras empresas de compartilhamento no Brasil, elas não possuem em suas estruturas uma cooperativa importando suas aeronaves, já que não existem registros de importações de aeronaves nos bancos de dados do órgão realizadas por qualquer outra cooperativa no país, sendo, portanto, a Voar a única cooperativa que figura como importadora de aviões.
Em nota conjunta enviada à reportagem, Avantto e Voar dizem ter confiança de que os fatos serão esclarecidos.
“O entendimento da Delegacia da Aduana de Belo Horizonte não é correto. As aeronaves em questão foram importadas em 2010, sob o regime de admissão temporária, respeitando integralmente as normas da Receita e da Anac. Tanto que o processo contou com aprovação formal desses órgãos, incluindo renovações anuais devidamente realizadas desde 2011”, diz a Avantto.
“Para tentar validar sua tese, a Delegacia da Aduana extrapolou os limites da fiscalização que lhe cabe (isto é, verificar a validade dos processos de importação e exportação de mercadorias) e entrou no mérito da validade do modelo jurídico e societário da Voar, o que por si só causa estranheza. A Voar já foi fiscalizada pela Receita anteriormente, órgão legitimamente constituído para tal, sem que a Voar fosse autuada ou penalizada por qualquer infração”, diz o comunicado da Avantto.
“Afirmar que a Voar é uma cooperativa de fachada seria como, por exemplo, dizer que um fundo de investimento deveria ter o mesmo CNPJ de seu gestor sob pena de estar cometendo uma fraude”, diz.
A empresa também afirma que a associação dos cooperados é voluntária. “Considerando o nível de esclarecimento e o acesso aos melhores advogados do país dos mais de 200 membros da Voar, alegar que esse perfil de cooperado aderiu à Voar sem entender o que estava fazendo ou que aceitariam participar de qualquer esquema fraudulento para ocultar bens dos acionistas da AMS [razão social da Avantto] padece de lógica”, diz a empresa.
Ricardo Villela Marino diz, em nota que foi intimado a colaborar com o órgão em 2021 no âmbito de fiscalização instaurada contra a Voar. “Tratava-se de justificar pagamentos que fiz à cooperativa em 2011 e 2012, período em que a integrei, sem jamais ter feito parte da sua diretoria. Atualmente, o procedimento consta do sistema do Fisco como arquivado em relação a mim”, diz.
Marino afirma ter prestado as informações solicitadas sem demora e, desde então, não ter recebido nenhuma comunicação sobre o tema.
Meyer Nigri afirma que teve 5% de participação em um helicóptero, mas desconhece os questionamentos sobre a cooperativa. Segundo ele, os serviços não eram mais baratos do que os concorrentes no mercado, tanto que tentou vender sua cota e, sem conseguir um comprador, acabou doando. “Nunca sequer escutei qualquer suspeita de irregularidade. Também não estou dizendo que tenha [irregularidade]. Não tenho ideia. Já faz muitos anos”, diz.
Neymar, a farmacêutica Biolab e o Santander enviaram comunicados à reportagem dizendo que não têm conhecimento sobre o tema.
Sobre a sala fechada em Belo Horizonte, a nota enviada pela Avantto à reportagem diz que “por questões mercadológicas, as atividades da Voar se desenvolveram ao longo dos anos, primordialmente nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro, onde a cooperativa possui instalações operacionais. Em decorrência desse fato a sede da Voar encontra-se em processo de mudança para São Paulo”.
Sobre a ausência de funcionários e a incapacidade operacional da Voar diz que a AMS é contratada para administrar as atividades e operar as aeronaves. “De acordo com boas práticas de mercado também terceiriza suas demandas contábil e jurídica. Além de contar com empresas especializadas em comércio exterior como trading companies para auxiliar no processo de importação”, afirma a nota.
Sobre o espelhamento, por sua vez, diz que o grupo de acionistas da Helisolutions divergia sobre o futuro do negócio, por isso, formou-se uma nova sociedade que fundou o programa Avantto para administrar, entre outras, as aeronaves da Voar. “Os cooperados da Cooperfly foram convidados a aderir à Voar e aqueles que assim desejaram o fizeram livremente”, diz.
Procurada pela reportagem, a Receita não quis comentar o caso.