FLORIANÓPOLIS, SC (FOLHAPRESS) – A definição de música clássica pode ser complexa. Se pensar em nomes como Vivaldi, Schumann e Wagner, achar elementos comuns talvez seja fácil. Mas quais as semelhanças deles com Villa Lobos, Gershwin e John Cage? E por que o trabalho de Miles Davis e John Coltrane seria outra coisa?
Em artigo publicado na revista The Atlantic, o compositor e regente americano Matthew Aucoin defende a substituição do termo “música clássica” por “música escrita”.
Para ele, o que une os ditos compositores clássicos e os diferencia de artistas, digamos, populares é o processo criativo. E a sua trajetória artística permite a afirmação. Antes de se consagrar nas salas de concerto dos Estados Unidos, passou por grupos de rock e jazz.
“O ato de imaginar, de escrever algo, é o que define a arte”, diz Aucoin. No jazz, por exemplo, se pode anotar a melodia e a harmonia. Existe, aliás, o Real Book, que reúne as partituras mais populares do estilo. Mas o espírito é a liberdade de improvisação. “Nenhum músico de jazz que se respeite tocaria o Real Book como está escrito. O jazz começa na performance.”
Existem diversos exemplos na MPB que mostram discos inteiros sendo construídos dentro dos estúdios. “Mesmo sem partitura, o produtor [Pretinho da Serrinha] sabia exatamente o que queria de cada músico. Ainda assim, dava liberdade para todos colocarem a sua assinatura, dentro de algo minuciosamente planejado por ele. Teve música que Pretinho trazia pronta de casa. Às vezes, chegava só com o tema na cabeça e resolvia rapidamente no estúdio”, diz o encarte do LP “Xande Canta Caetano”.
Por isso, “Take The A’ Train”, de Duke Ellington, é tocada mil vezes, e todas elas são diferentes. No entanto, “Claire de Lune” soará quase sempre parecida Debussy anotou precisamente o que queria. “E não falo só de compositores. Existe todo um modo do intérprete se relacionar com a partitura”, afirma Aucoin.
“Quando se escreve algo, é como fazer a planta de um edifício. Isso permite construir estruturas que são complexas. É desnecessário memorizar tudo. Pode-se passar um ano montando sua própria estrutura e imaginando sua forma.”
No seu ensaio, Aucoin diz que, sim, tem partituras por aí das canções dos Beatles, porém o processo é inverso. Nesses casos, as notações foram registradas depois. Primeiro se cria, depois se copia. Aliás, Heather Mills, ex-mulher de Paul McCartney, disse ao jornal The Guardian que o roqueiro sequer sabe ler partituras.
Aucoin compara a música com a literatura. “Há muito tempo, a tradição oral reinava. Em algum momento, começaram a escrever coisas. O que aconteceu é que a escrita ganhou vida própria, virando o processo criativo por si só.”
Antes de Beethoven, as partituras existiam e guiavam os músicos. Mas os compositores escreviam para determinadas funções, como divertir a corte ou educar fiéis, e elas eram interpretadas em momentos específicos.
Bach, por exemplo, compôs a “Paixão Segundo São Mateus” para o culto de Páscoa de 1727 da igreja de São Tomás, em Leipzig. Existia certa margem para improvisação, principalmente dos instrumentos harmônicos.
Beethoven passou a pensar na posteridade, queria que as obras permanecessem como as imaginou. Então, os compositores começaram a registrar como desejariam que fosse tocado seja as notas, o andamento ou as dinâmicas, os símbolos que dizem para tocar mais ou menos alto.
Além disso, para Aucoin, o adjetivo “clássico” é inadequado porque é impreciso. O termo tem múltiplos significados, e nenhum descreve que tal música é essa. Para o dicionário Michaelis, “clássico” é o que é relativo à cultura greco-latina, que tem como base a tradição etc.
Na historiografia, “clássico” é o período entre o barroco e o romântico. Segundo o historiador Roy Bennett, foi algo que durou, mais ou menos, entre 1730 e 1810, época em que o contemporâneo era Mozart.
No livro “Escuta Só”, o crítico da revista New Yorker Alex Ross escreveu que a palavra “clássica” “condena ao limbo a obra de milhares de compositores ativos”.
O próprio repertório de Aucoin confronta as definições. Primeiro, rompe com tradições, pensando em formações instrumentais distintas ou compondo acordes atonais. E ele faz suas transgressões no século 21, 215 anos após o fim aproximado do classicismo.
Em “Uma Breve História da Música”, o pesquisador Bennett escreve que o sentido de “música clássica” “está associado a algo que consideramos de alta classe, de primeira ordem, de extremo valor”. “Acho que o debate sobre isso travou em discussões sobre elitismo e eurocentrismo”, lamenta Aucoin.
Outros adjetivos usados são ainda piores para ele. Em inglês, não se usa a palavra “erudita” para classificar a música. “Se falássemos, não cairia bem. Acho que faria com que as pessoas pensassem que é difícil ou que não é para elas.”
O artista começou a fazer reflexões sobre terminologias para confrontar o avanço do autoritarismo nos Estados Unidos e o impacto da inteligência artificial na arte.
“Precisamos de nova linguagem musical para dar voz ao mundo que vivemos. As coisas estão muito assustadoras aqui. Sentimos que tudo colapsa. E, em todo o mundo, enfrentamos o sentimento de que o ser humano poderá ser substituído. Nosso trabalho, como artistas, é descobrir o que valorizamos sobre ser humano.”
Baseado na poesia de Jorie Graham, o músico lança neste ano a composição “Música para Novos Corpos”, que, pela perspectiva de uma pessoa com câncer, reflete temas como mudanças climáticas e digitalização da vida.