SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A chegada ao Brasil da chinesa Meituan, dona do maior aplicativo de delivery do mundo, o Keeta, promete movimentar ainda mais o mercado de entrega de comida no país, que vive um 2025 agitado, com disputas de apps por restaurantes e entregadores, movimentação no Congresso para regulamentar a atividade, espera de julgamento no STF (Supremo Tribunal Federal) e protestos de motoboys.
A Meituan planeja investir R$ 5,6 bilhões no país até 2030, atrair cem mil motoristas de moto e abrir ao menos mil vagas no primeiro ano 90% delas para brasileiros.
A longo prazo, estima 4.000 postos, a maioria no Nordeste. As atividades da empresa devem começar nos próximos meses, mas ainda sem data exata.
O investimento faz parte do pacote de parcerias entre Brasil e China fechado pelo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em maio, um mês depois do “Breque dos Apps”, e tem levado iFood, Rappi e 99 a se movimentarem.
Os três maiores aplicativos anunciaram benefícios a restaurantes e entregadores. Para motoboys, houve aumento do valor pago por corrida por iFood e Rappi. Para restaurantes, Rappi e 99Food que retorna ao Brasil depois de deixar o país em 2023 zeraram taxas.
Entregadores, aplicativos, restaurantes e parlamentares ouvidos pela Folha de S.Paulo afirmam que é preciso esperar para entender como será a atuação da Meituan no Brasil, mas apontam como principal preocupação denúncias de excesso de trabalho e baixa remuneração na China e em Hong Kong como fator a ser monitorado.
A principal preocupação dos motoboys é com o possível crescimento do que chamam de precarização da atividade, já que a forma chinesa de encarar o mercado de trabalho é diferente da brasileira, com mais horas de trabalho e menos direitos.
“A gente vê a entrada de mais uma empresa no segmento como um avanço rumo a todo esse universo da precarização que a gente já está vivendo”, diz Gilberto Almeida, o Gil, presidente do Sindmoto-SP (Sindicato dos Mensageiros Motociclistas, Ciclistas e Moto-Taxistas do Estado de São Paulo) e da Confederação Nacional dos Sindicatos dos Motoboys e Motoentregadores.
“Quando você coloca a cultura chinesa dentro desse modelo de negócios das empresas que já estão aqui é como se fosse uma versão mais ‘arruinada’ do que a gente já tem, com cenário de acidentes e mortes, que pode descambar para algo pior”, diz.
Edgar Francisco da Silva, o Gringo, presidente da Amabr (Associação de Motofretistas de Aplicativos e Autônomos do Brasil), aponta a “tradição chinesa de trabalhar demais” como um risco. “Na realidade, essas empresas têm investidores, querem resultado e, para ter resultado, é explorando”, afirma.
“Se fosse uma empresa da Suíça, eu ainda ficaria com pé atrás, mas acreditaria mais, por lá pregarem uma vida mais justa, mas vinda da China ou dos Estados Unidos ou da Europa, não acredito que vai vir coisa para nos beneficiar.”
Os números da Meituan surpreendem. São 770 milhões de usuários ativos na China, 14,5 milhões de restaurantes parceiros e média 98 milhões de entregas diárias por meio de pedidos online só em 2024. A empresa atua ainda em Hong Kong e na Arábia Saudita
Wang Xing, fundador e CEO da Meituan, afirmou, durante o lançamento da parceria com o Brasil, estar ansioso para atuar no mercado brasileiro, estratégico para a empresa, e defendeu a concorrência como benéfica especialmente para os consumidores.
“Estamos ansiosos para trazer o Keeta ao Brasil, com o objetivo de melhorar a experiência dos consumidores, impulsionar o crescimento dos restaurantes parceiros, e gerar mais oportunidades para entregadores em todo o país”, disse. Para ele, a maior concorrência deve baratear preços.
Para os aplicativos, o temor vai além da maior concorrência e esbarra no caráter de “novidade”, que tem levado o governo a enaltecer os chineses, deixando de lado empresas que já investem no Brasil, e fechando os olhos para denúncias trabalhistas.
Uma das queixas é é de que Lula nunca se reuniu com nenhum representante dos maiores apps de delivery.
Procurados, apenas o iFood se manifestou. Rappi e 99 não comentaram.
Em nota, o iFood afirma respeitar e acreditar que a competição é importante, mas precisa ser feita “com responsabilidade e mentalidade de longo prazo”.
A empresa diz defender “concorrência justa e segurança jurídica”, afirma que seus bons resultados ocorrem por conta de uma atuação “consistente” de destaca que, desde 2021, apoia a regulamentação do trabalho intermediado por plataformas para garantir “proteção social” aos entregadores.
“Há 14 anos o iFood investe no Brasil e contribui para o desenvolvimento econômico e tecnológico local. Como resultado, as atividades da companhia foram responsáveis por movimentar mais de R$ 110 bilhões em 2023, impactando 0,55% do PIB e gerando 909 mil postos de trabalho diretos e indiretos em toda a cadeia.”
PROJETO DE GUILHERME BOULOS DEFINE VALOR MÍNIMO DA CORRIDA
Um projeto apresentado pelo deputado Guilherme Boulos (PSOL-SP) pode acalmar os ânimos ao contemplar a principal reivindicação da categoria, que é a definição de um valor mínimo por entrega a ser praticado por todas as empresas.
Para os entregadores, a proposta seria uma forma de proteger os profissionais contra precarização de qualquer empresa que atue no Brasil.
Apelidado de “PL do Breque”, o projeto de lei 2.479/2025 define em R$ 10 o valor mínimo por entrega em até quatro quilômetros quando feita por moto ou automóvel e em raio de até três quilômetros quando a entrega é por bicicleta.
O projeto cria ainda adicional de R$ 2,50 por quilômetro excedente e de R$ 0,60 por minuto de espera a partir de dez minutos.
À Folha de S.Paulo, Boulos afirmou que o projeto foi “construído a partir das demandas dos entregadores”, após as manifestações do final de março, que atingiram 18 capitais e 59 cidades. A medida tem o apoio de oitos partidos além do PSOL: PP, PT, PSB, Republicanos, Rede, PCdoB, PDT e MDB.
Para o deputado, o valor mínimo “é uma demanda justa e legítima”. Ele diz acreditar que não faltarão, por parte das empresas, “recursos para pagar apenas R$ 2,50 a mais por entrega aos motoboys”.
Boulos afirma ver com bons olhos a concorrência com a chegada da Meituan, mas que o mais importante é atender as mínimas sem importar “o país de origem” da companhia.
Joaquim Saraiva, presidente da Abrasel-SP (Associação Brasileira de Bares e Restaurantes em São Paulo), diz esperar que os custos cobrados pelas plataformas diminuam para os restaurantes com a chegada da Meituan e que a remuneração dos motoboys aumente.
“O que esperamos é que o serviço também melhore. Falando dos motoboys, temos visto sinalização de que as plataformas vão melhorar a remuneração, que [os entregadores] vão passar por reciclagem e treinamento para que ofereçam ótimo serviço. Nós vemos com muito otimismo tudo isso.”
Procurado, o MTE (Ministério do Trabalho e Emprego) disse seguir negociando a regulamentação da atividade de entregadores de app, mas que esse tema esbarrou no valor da remuneração e da contribuição sindical quando ocorreram os debates que resultaram no PLP 12, enviado em 2024 para a Câmara.
Segundo a pasta, temas como saúde e segurança, seguro contra acidentes, remuneração mínima, proteção social e maior transparência na gestão do algoritmo foram debatidos de forma incansável, mas não houve consenso especialmente sobre pagamento mínimo e contribuição à Previdência.
Sobre a entrada da Meituan e as denúncias trabalhistas na China e em Hong Kong, o MTE afirmou manter “as mesmas preocupações com qualquer empresa que atue ou venha a atuar contratando entregadores sem garantir direitos mínimos e proteção social”.