SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Salvador Dalí foi uma figura tão maior que a vida, tão complexa e cheia de nuances, que a ideia de vivê-lo no cinema parece impossível. Com esse problema em mente, o diretor Quentin Dupieux achou uma solução simples. Se um ator não dá conta do serviço, por que não multiplicar em seis o número de intérpretes do pintor surrealista?

Essa é a proposta de “Daaaaaalí”, comédia que brinca diretamente com o ato de traduzir a essência do espanhol na telona. O filme usa diferentes versões do artista ao longo de seus 80 minutos para dar conta de sua figura midiática, que era bastante pomposa. Dalí era uma quimera diante das câmeras, revelando diferentes figuras a cada nova entrevista, e o longa tenta dar conta de uma personalidade tão volátil.

As faces do pintor ganham cores diferentes em cada um dos membros do sexteto de atores. Com Gilles Lellouche, por exemplo, Dalí tem contornos de um pavão, sempre a se gabar sobre as suas conquistas. Já Jonathan Cohen vive uma versão mais agressiva do artista, irascível em qualquer interação mesmo quando concorda.

Ainda há espaço no longa para encarnações do pintor pelos atores Édouard Baer, Pio Marmaï e Didier Flamand, além de uma ponta de Boris Gillot no papel. Juntos, eles formam os seis “a” do título do filme, compartilhando o personagem cena a cena –ou até mesmo durante elas.

O longa gira em torno de uma entrevista de Dalí para uma jornalista, vivida por Anaïs Demoustier, que sofre para viabilizar o encontro com o espanhol. Ele foge da conversa de todas as maneiras, sempre desistindo no último segundo por uma besteira qualquer. Primeiro ele não fala sem uma câmera na sala; depois, destrói o aparelho sem querer com o seu carro, ao chegar no set localizado em uma praia.

O percurso da trama vai ficando cada vez mais sinuoso conforme Dupieux afunda “Daaaaaalí” em tintas surrealistas. Sonhos dentro de sonhos, encontros entre versões de Dalí, tomadas reproduzidas de trás para a frente… tudo isso alimenta o humor seco do filme, que se diverte com a impossibilidade de resumir o artista a uma única imagem.

O primeiro encontro de Dalí com a jornalista, em um quarto de hotel, já dá o tom da brincadeira. Depois de dar um chá de cadeira, o artista demora para atravessar o pequeno corredor que se põe entre o elevador e a suíte. A cena demora seis vezes o tempo normal, porém, alongada para quase três minutos.

Dupieux estica a passagem de propósito, exatamente para deixá-la ridícula. Enquanto o pintor dá passos infinitos no hall minúsculo, a repórter tem tempo de ir ao banheiro e de receber um pequeno carregamento de água para a entrevista. A assistente do pintor, então, consegue ver um ponto inteiro de uma partida de tênis na TV do quarto enquanto o chefe não chega no quarto.

Nisso, o espectador já entendeu boa parte da dinâmica dos personagens, incluindo que o artista é vaidoso e que ele deve dar um belo baile na pobre jornalista.

O filme segue nesse passo pelo resto da duração, virando quase um “Bolero” de Ravel pelo viés onírico de Dalí. A crescente interminável se dá até mesmo na trilha sonora de Thomas Bangalter, ex-Daft Punk, com os instrumentos de corda tocando a mesma melodia de novo e de novo.

Essa ciranda toda vira o propósito do filme de Dupieux, que assina também o roteiro, a montagem e a fotografia da produção. A inspiração nos sonhos pintados por Dalí está ali, traduzida na comédia de gato e rato da entrevista, que nunca acontece em cena. Se a essência do espanhol beira ao indescritível, o longa inscreve o espectador no raciocínio ilógico de sua obra.

Com a história dando tantas voltas, “Daaaaaalí” ora ou outra se perde em si mesmo. Em especial nas sequências que não envolvem as seis faces do pintor, voltadas às negociações da repórter com seu editor. Elas buscam alguma progressão mínima nos acontecimentos, mas o longa só entala nessas horas, e isso se repete por vezes demais para a duração tão curta.

Mas a imagem de Salvador Dalí está ali, exibida de forma tão bem humorada quanto os seus icônicos bigodes com as pontas voltadas para cima. O filme tem intenções modestas, mas consegue um belo feito.

Daaaaaalí

Onde: Nos cinemas

Classificação: 14 anos

Elenco: Anaïs Demoustier, Gilles Lellouche, Édouard Baer

Produção: França, 2023

Direção: Quentin Dupieux

Avaliação: *Bom*