SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Tragédia pouca é bobagem na animação “Memórias de um Caracol”, que já começa entregando uma morte nos braços do espectador. Logo nos primeiros minutos, a protagonista Grace vê a amiga Pinky morrer diante de seus olhos, afetada pela doença de Alzheimer.

Apesar de lenta e dolorosa, a perda é só mais uma na triste vida de Grace, que conta as próprias mazelas ao espectador durante o filme. Na infância, por exemplo, seu pai morreu e o sistema de adoção a separou do irmão, Gilbert, que acabou em uma família muito religiosa e hostil.

Ela também sofreu muito preconceito na escola por seu lábio leporino, o que incentivou a sua postura mais fechada, como a de um caracol. Por acaso, ela coleciona o molusco de forma obsessiva, acumulando-os em seu quarto em número cada vez maior.

A jornada difícil de Grace é repassada por completo no longa do australiano Adam Elliot, que foi um estranho no ninho no último Oscar de animação. Enquanto os outros indicados miravam o público infantil, o longa só fala com os adultos –desde os temas depressivos, passando pelo suicídio, até as cenas com cigarros e nudez feminina.

“Memórias de um Caracol” saiu derrotado da premiação, mas o diretor diz que viu com bons olhos a vitória do independente “Flow” –em especial por superar produções americanas endinheiradas como “Robô Selvagem” e “Divertida Mente 2”. “Foi um cenário de Davi e Golias”, diz Elliot durante uma videochamada da Austrália.

“É uma pena que a gente tenha que competir entre si, porque nós independentes sabemos que o sucesso de um filme facilita a vida do próximo. Há uma consciência coletiva crescente no mercado de animação indie e acho que nunca houve época melhor para ser um autor nesse meio, em especial se você conta tramas desafiadoras como as minhas.”

Elliot ainda questiona de maneira bem-humorada a separação entre animações para adultos e crianças, desafiando a posição da Disney como sinônimo de animação infantil.

“Eu sempre argumento que a Disney não é para crianças porque, vendo os filmes que eles lançaram nos anos 1940 e 1950, eram muito racistas, sexistas e homofóbicos. Meus filmes, ironicamente, são ensinados em escolas ao redor do mundo.”

O cineasta fala com serenidade sobre o tema porque está sob os holofotes há muitos anos. Ele venceu o Oscar no ano passado pelo curta “Harvie Krumpet” e encontrou público cativo em 2009 com “Mary e Max”, sua estreia em longas-metragens. “Memórias de um Caracol” passa por boa fortuna parecida –a obra ganhou sessões com trilha sonora ao vivo pela Orquestra de Câmara Australiana neste fim de semana em Sydney.

Em todos os trabalhos, Elliot imprime a mesma marca –ele trata de histórias sobre pessoas com doenças mentais e, em suas palavras, vistas como esquisitas pela sociedade.

“Eu gosto de pôr o espectador na perspectiva dos personagens e fazer com que perceba que eles são normais. Todos nós temos algo de errado, nós somos imperfeitos. O que acontece é que os problemas de algumas pessoas são mais óbvios que os de outras.”

As produções nascem de histórias ouvidas pelo diretor de amigos, familiares e até de pessoas que conhece em suas viagens. Elliot anota os causos em cadernos e, quando encontra um tema de interesse, usa as tramas no roteiro para construir uma narrativa mais humana.

No caso de “Memórias de um Caracol”, o projeto surgiu pouco depois da morte de seu pai, em 2017. O cineasta descobriu na época que o patriarca e a sua mãe tinham hábitos de um acumulador, com o primeiro mantendo três garagens cheias de objetos aleatórios. No processo, Elliot lembrou de um amigo da infância que tinha um lábio leporino, e dessa mistura toda surgiu a personagem Grace.

“Meus filmes não são documentários, eles são obras de ficção, mas eles se baseiam em pessoas reais. Eu amo uma citação que diz para nunca deixar que a verdade intervenha no caminho de uma boa história, então eu sempre estou embelezando, exagerando e adicionando alguma cor em meus roteiros.”

A animação também traduz para a imagem o discurso sobre imperfeição do diretor, usando um estilo de animação em stop motion que ele batiza de “chunky wonky” –algo como robusto e instável em português. Todos os elementos em cena são assimétricos, segundo Elliot, e o artista proíbe que qualquer item seja muito perfeito.

Quando um dos modelos fica próximo demais do ideal, o cineasta diz que incentiva o animador a deixar o adereço se espatifar no chão ou a torcer a massa até que ela obtenha uma deformação.

“A animação ficou tão refinada e polida que até no stop motion ela parece gerada por computador”, diz Elliot. “A beleza deste formato é que você consegue ver as digitais dos animadores, a poeira e a areia, e o público ama essa estética mais tátil.”

Com “Memórias de um Caracol”, o desafio foi reproduzir esse estilo em uma escala maior, graças aos cenários recheados de objetos das casas dos personagens acumuladores. Adam Elliot diz que queria despertar uma sensação de claustrofobia no público durante o filme, mas a tarefa de produzir tantos caracóis cobrou o seu preço na equipe.

“Modelamos tantos moluscos que teve dias em que preferia ter escrito uma história sobre um minimalista”, ele afirma enquanto dá uma risada.

Memórias de um Caracol

Quando: Austrália, 2024

Onde: Nos cinemas

Classificação: 14 anos

Elenco: Sarah Snook, Kodi Smit-McPhee e Eric Bana

Direção: Adam Elliot